Minha
maior intuição existencial, eu a tive no momento mais besta imaginável. Talvez
atribuamos aos grandes acontecimentos da vida um sentido tão garantido que
acabamos por encará-los com solenidade quase banal. No fundo esperamos que eles
aconteçam, e a enorme alegria ou tristeza com que reagimos não é uma surpresa.
As pequenas coisinhas da vida não:
sua invisibilidade costumeira pode se transformar em momentosas descobertas.
Pois se existir um Deus, não seria de se esperar que ele povoasse Sua criação
com catástrofes, guerras e instantes de redenção – pontos de inflexão da
história coletiva e pessoal? Mas que misterioso desígnio poderia tê-lO
inspirado a criar o lavar louças, o catotar o nariz, o comer cuscuz?
Juro que vivi o enlevo que pretendo
narrar: uma vez, ainda em Recife, escovava meus dentes quando, sei lá por que,
passou-me pela cabeça a pergunta: como seria se o mundo não existisse? Senti
como que uma cacetada filosófica, a imediata e dilacerante consciência do
óbvio, ou seja, de que eu não apenas estava vivo, mas que estava, com a
frivolidade dos vivos, escovando meus dentes num recanto de um apartamento
recifense. E se eu não existisse? E se eu nunca tivesse nascido? E se o mundo
nunca tivesse sido criado? E quando eu morrer?
Se me permitem o trocadalho: nada
pode ser tão absurdo quanto a consciência do Nada. Não entra nas nossas cabeças
o não-existir, o não estar-aí-nem-aqui-nem-acolá. Tentar entender esse conceito
enquanto encarava meu reflexo boquiaberto no espelho me fez ser invadido, por
um lado, pela consciência de minha mortalidade e, por outro, por uma profunda
desconfiança do mundo.
Naquele dia, para mim ficou claro
como nunca que existe uma ruptura nas nossas vidas pelo simples fato de estarmos
vivos. Jamais seria capaz de explicar o por quê dessa minha convicção, mas
suspeito que o não-existir seja o conceito óbvio, natural, e o existir a
violação. A realidade é um estupro, digamos assim, para causarmos bem muito
efeito.
É um paradoxo e um mistério,
portanto, que a dimensão prosaica da vida – justo essa dimensão impregnada de
concretude que nos lembra, o tempo todo, que estamos vivos – também tenha a
aptidão de afundar-nos numa agradável indolência que quase nos faz esquecer que
a vida é um milagre – uma intervenção permanente de um poder criador que não
conseguimos entender. É uma tensão difícil de resolver: sabemos que vamos
morrer um dia, estamos inseguros sobre o que acontecerá com nossa consciência
depois da morte, mas, ainda assim, achamos tão natural desperdiçarmos nossas
vidas num repetir meio ultrajante de coisinhas bobas que não me admiro que
tantas pessoas hoje acreditem que o sentido da existência sejam essas mesmas
pequenas coisinhas bestas – o comer cuscuz, por exemplo. Não lhes tiro a razão,
já que o banal também provém do mesmo princípio criador que impede que o
universo se desintegre subitamente numa grande nuvem de poeira cósmica.
Por outro lado, não somos todos convidados
a explorar o mistério pelo simples fato de vivermos? Como ser indiferente a
essa angústia? E não estará, também, essa sede de desconhecido por trás do
ímpeto que nos leva a tentar expressar os conflitos de nosso mundo interior?
Também não será essa consciência do absurdo que nos leva a tentar participar do
poder criador divino? A alma possui nela um abismo, uma sede de absoluto que é,
também, uma vontade de morte.
Habitual comedor de cuscuz que sou,
parece-me problema de difícil solução colocar-me frente ao fascínio que certas
vezes sinto pela altura e pela profundidade – idéias que, mesmo causando profundo
mal-estar, são fascinantes. Muitas vezes me contento em reconhecer que a tensão
existe, que ela é definidora e que, por mais que tente ignorá-la apegando-me
aos confortos manteiguentos do cuscuz, essa sarna espiritual não pode ser tão facilmente
coçada. Afinal, não parece emocionante empreender uma grande odisséia
espiritual? Novo argonauta dos abismos cerúleos e das vastidões da mente,
querer navegar pelas páginas dos clássicos, prestar honras aos maiores sábios
de todas as eras e todas as terras, aventurar-se pelos recantos mais sinistros
do espírito e, quem sabe, alcançar alguma forma de iluminação num apoteótico
orgasmo literário que faria tremer os alicerces do mundo conhecido!
Responderia
a certa amiga que muito se preocupa com meus prematuros sintomas de
esquizofrenia megalomaníaca que ela não precisa ficar apreensiva, já que meu
delírio foi abortado pelo inimigo que eu menos esperaria encontrar: o
cotidiano.
E que poder ele tem de
nos prender ao chão! Não dá, afinal, para ganhar dinheiro com epopéias do
espírito – e as epopéias do espírito que dão dinheiro nem merecem ser vividas. Digam-me,
senhores, como eu poderia decifrar os grandes enigmas do Cosmos, se minha
existência é um repetir de uma estafante rotina, em que passo oito horas
aprisionado dentro de um escritório, chego em casa sem cabeça para ler nem
revista de fofoca, e sou obrigado, para conseguir duas míseras horas de
atividade intelectual diária, a acordar às 5:30 da manhã? Será que vale a pena me
esforçar para mergulhar nos abismos do conhecimento, se eu poderia simplesmente
acordar mais tarde e comer um cuscuzinho bem gostoso?
E a ruptura existencial que eu imaginei vivenciar naquela noite em
Recife, quando fui assaltado pela consciência de estar vivo enquanto escovava
os dentes? Se levo essa intuição às suas últimas conseqüências – e aceito minha
condição de criatura consciente num universo razoavelmente interessante – serei
forçado a reconhecer que uma tomada de postura é inevitável. E essa escolha
pressupõe a existência de uma escala de valores. Que é mais importante: os
altos ideais ou o cuscuz?
O valor da primeira opção é tão óbvio que fico quase desconfiado. Não
serei, porém, desonesto: acredito, sim, que uma vida dedicada ao conhecimento é
uma vida melhor, especialmente quando essa busca nasce de uma tentativa de
assumir corajosamente o próprio destino. Mas também não nos deslumbremos,
supondo que esse conhecimento se limite aos grandiosos monumentos da cultura.
Ainda que os sábios de todas as eras tenham apontado para o efeito obsedante da
matéria – das delícias materiais, inclusive – acredito que o saber é uma
postura diante de um mundo que é intrigante em todos os seus níveis, não só nas
alturas etéreas, mas mesmo na banalidade de cada momento.
E se foi escovando os dentes que tive a única experiência filosófica
realmente intensa de minha vida, como poderia me admirar se algum dia eu
encontrasse a iluminação numa colherada dum cuscuzinho bem quente com ovo
mexido e café?[1]
[1] Só não venham esses adolescentes
debilóides de hoje em dia acharem que isso é desculpa o bastante para não
estudarem porra nenhuma, e achar que vão desvendar o sentido da vida escrevendo
asneiras no facebook.
Muito bom companheiro! A luta continua.
ResponderExcluirAi, Eduardo, agora você me fez sentir mal por estar sempre escolhendo o cuscuz. E, sem alternância com o éter, ele se torna cada vez mais incapaz de produzir rupturas existenciais...
ResponderExcluirO problema é que a matéria às vezes é boa, né?
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