terça-feira, 30 de julho de 2013

Aula de Lógica Cristã Ou Por que não faz o menor sentido uma agenda política religiosa



           O que me irrita na militância política religiosa que cada vez mais vem ganhando espaço no Brasil não é sequer o conteúdo dos valores implícitos nessa agenda, mas sim a absoluta falta de lógica na idéia de uma política cristã. Existe uma razão muito boa para Jesus ter dito “a Deus o que é de Deus, a César o que é de César”: não é uma máxima de sabedoria prática, é um corolário dos princípios mais elementares dessa religião.
            Em primeiro lugar, se aquilo em que os cristãos acreditam é verdadeiro, Deus é onisciente. Não sei se todo fiel tem uma idéia clara das implicações disso: significa que nenhum acontecimento – nem mesmo o mais insignificante – escapa à mente do Criador. É uma idéia tremenda, e seria terrivelmente opressora se a imagem desse Deus onisciente não estivesse associada a Sua misteriosa capacidade de perdão. Dá até para entender a angústia de Raul Seixas quando ele disse: “Eu estava com Deus, e eu tinha medo”[1].
            O segundo ponto é que Deus é onipotente. Ou seja, Ele pode tudo. Pode até mesmo criar uma pedra tão pesada que nem Ele é capaz de levantar, e ainda jogá-la sobre a cabeça de um teólogo petulante. É a Sua vontade, por sinal, que sustenta a realidade deste mundo, e se por um segundo Ele se desconcentrasse, o universo inteiro voltaria ao pó de que foi criado.
            Liguem os pontos. Imaginemos que um Ser tão poderoso tenha inscrito na natureza deste mundo Sua idéia de Bem e de Mal. Imaginemos, ademais, que nosso Criador, por alguma razão misteriosa, alheia ao entendimento dos teólogos, tenha estabelecido preceitos extremamente rigorosos sobre o comportamento sexual da espécie humana. Imaginemos, enfim, que sodomia seja pecado.
            Que esperanças teriam os pecadores de escapar à ira de tão terrível Pai? Mesmo as menores faltas estariam registradas no rol de nossos erros. No Juízo Final, quem houvesse infringido as regras divinas seria inapelavelmente lançado ao Lago de Fogo. Ou seja, se aquilo em que acreditam as correntes mais exaltadas do cristianismo neopentecostal for verdadeiro, os fiéis não precisam mexer um dedo contra os pecadores: Deus se encarregará de puni-los, com meios com que nem sequer podemos sonhar!
            Dito em termos bem simples, o cristão militante é um completo imbecil – comparável, em termos de idiotia, apenas a certas correntes do marxismo e do feminismo. A mensagem que Cristo pregou é uma mensagem de radical ruptura: “o meu reino não é deste mundo”. Esta vida é o campo de batalha do espírito. Aqui bons e maus têm a chance de provar em que barco estarão quando o Dia da Ira chegar. Mas a promessa de que os apóstolos falam não aconteceu: ela virá após a morte, para os mansos, para os piedosos, para os que se mostrarem dignos de amar e de serem amados.      Mais importante de tudo, a salvação é para sempre. O que nos sucede após a morte, portanto, é incomparavelmente mais relevante que aquilo que vivenciamos em nossas vidas. Que são os sofrimentos da carne comparados à infinita beatitude que está por vir? Que são as injustiças sofridas, os insultos e violências, comparados a uma eternidade na companhia da gloriosa Mente que concebeu o mundo?
O cristão com o mínimo de compreensão sobre os preceitos de sua religião sabe que se deve odiar o pecado amando o pecador. Pois é a capacidade de perdoar que pode nos tornar merecedores do perdão divino. Talvez seja possível, no máximo, tentar convidar o pecador a partilhar do destino em que os cristãos acreditam, porém tentar forçar alguém a salvar-se é algo tão absurdo que até os insultos me escapam!
Depois do açúcar refinado, uma das maiores fontes de males da humanidade é a estupidez bem-intencionada. Como muitos de nós em breve devem descobrir, o caminho para o inferno está ladrilhado com ótimas intenções. O cristianismo paladino de nossos tempos, em suas cruzadas para privar as pessoas de meios com que pecar, tem, como era de se prever, contribuído ainda mais para o retrocesso político deste país.
Não se pode ser claro o bastante quanto a isso: não é papel do Estado evitar que as pessoas sejam condenadas ao inferno. Apenas a convicção pessoal e a experiência íntima do amor divino podem dar-nos uma chance, pequena como seja, de salvação. Querer, portanto, impor curas gays, fazer campanhas contra o sexo pré-marital (desestimulando o uso de preservativos) e militar agressivamente contra a constituição civil de novas modalidades de família é um atraso social e espiritual. Absurdo dos absurdos, por exemplo, é a insistência de nossa sociedade em manter a prostituição desregulamentada, tornando possível uma catástrofe de saúde pública cotidiana, que acontece bem debaixo de nossos pios narizes! Não sou capaz de entender que amor é esse, que em nome de uma idéia deturpada de cristianismo impede que as putas tenham direitos trabalhistas e previdenciários mínimos, e que acha aceitável que os pecadores somem às misérias que sofrerão após a morte todo tipo de calamidade sexualmente transmissível!
Sim, inquisidores, eu sei que vocês o fazem por amor aos pecadores – não são, afinal, as torturas a última esperança de salvação para os cronistas? Mas, pelo menos em nome da coerência intelectual, abstenham-se da praça pública! Pois em nada se diminui um fiel que vive numa era de lassidão e perversidade. Pelo contrário: o justo se engrandece quando ele se mantém firme num mundo que o força, de diversas maneiras, a pecar. De uma maneira ou de outra, posso garantir que Deus não precisa da ajuda de vocês para consumar o desígnio ético secreto que Ele estabeleceu para Sua obra[2].
En passant, eu que tenho muitos e grandes defeitos, não seria capaz de condenar homossexuais e putas às torturas infernais; quem dirá Deus, que é infinita inteligência e infinito amor.


[1] Com toda certeza Deus via o que Raul estava fazendo no banheiro, assim como Ele vê também o que você faz por lá.
[2] Um parêntese, aqui, precisa ser feito no que concerne à agenda relacionada à legalização do aborto. Essa complicada questão não diz respeito apenas a uma moralidade religiosa, mas possui uma dimensão ética mundana, já que não está claro a partir de que instante uma criatura viva torna-se merecedora de tutela jurídica. Não deixemos, portanto, a idiotia de alguns grupos (os fundamentalistas religiosos, por exemplo) obscurecerem outras idiotias tão agudas quanto (como a das militantes de um “útero livre”).

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