Escrevo a tempo o bastante para ter um passado criativo. O seguinte texto é de 2007, do tempo em que eu (não) sabia o que queria da vida, e foi publicado em meu esquecido livro de crônicas, "A Inteligência numa Casca de Noz".
Porque estou saudoso hoje (e por que será que não tenho mais coragem de escrever textos assim?):
Porque estou saudoso hoje (e por que será que não tenho mais coragem de escrever textos assim?):
Eduardo Siebra, 22/08/2007 (7:33)
As ruas, bares e
inferninhos pernambucanos foram tomados de assalto pelo Melô da Periquita,
sucesso absoluto com sua letra e ritmo obsedantes:
Quem vai querer a minha periquita? A minha periquita? A minha periquita?
( refrão 2x)
Uma águia passou pelo meu quintal
Um vento muito forte querendo namorar
Acho que tá querendo a minha periquita
Que há muito tempo estou doida pra dar (2x)
Já passou uma semana e essa águia sumiu
Eu não ouvi o grito dela por aqui
O que que eu faço pra dar minha periquita
Que há muito tempo não dá uma voadinha (2x)
Quem vai querer a minha periquita? A minha periquita? A minha periquita?
Uma águia passou pelo meu quintal
Um vento muito forte querendo namorar
Acho que tá querendo a minha periquita
Que há muito tempo estou doida pra dar (2x)
Já passou uma semana e essa águia sumiu
Eu não ouvi o grito dela por aqui
O que que eu faço pra dar minha periquita
Que há muito tempo não dá uma voadinha (2x)
Quem vai querer a minha periquita? A minha periquita? A minha periquita?
Reproduzido
em centenas de carrinhos de som que circulam pela cidade vendendo CDs piratas,
o Melô da Periquita “chicletou” no inconsciente dos recifenses. Não raro alguém
se flagra cantarolando: “a minha periquita, a minha periquita, a minha
periquita”.
Como
não podia deixar de ser, toda sorte de intelectuais chicobuarcólatras,
jornalistas e, principalmente, professores de gramática – maiores responsáveis,
em minha humilde opinião, pela difusão da intransigência sobre o planeta desde
os tempos de Roma – já se prontificaram a condenar artisticamente a nova paixão
do povão pernambucano. Típico! Em verdade, juízos definitivos sobre
manifestações artísticas do vulgo só podem resultar de posturas intolerantes e
de leituras superficiais. Afinal, quem são eles para determinar, com sua
arrogante sabedoria de gabinete, o que é bom e o que não é para o povo sofrido
e trabalhador? Para bem ser sincero, quem pensa assim é não apenas opressor,
mas burguês, racista, homófobo, machista e anti-semita.
Destruamos
o preconceito promovendo uma sincera análise deste sucesso, feita com
sensibilidade social às nuances e preferências artísticas das massas.
Quem vai querer a minha periquita? A minha periquita? A minha periquita?
( refrão 2x)
O refrão, sem
dúvida, é o fragmento poético de maior vibração lírica. O uso consciente de
aliterações, assonâncias e repetições reforça o efeito vibrátil da métrica, de
inspiração claramente popular. Em termos formais, percebemos um certo atavismo
de soluções líricas dos cantadores medievais – que, diga-se, também se valiam
de motes bufos e satíricos para dar vazão a sua criatividade melódica. A prova
maior da perfeição dos versos é nossa incapacidade de esquecer o estribilho,
de marcante efeito mnemônico. Porém, o refrão destaca-se não só por sua
criatividade formal, mas, primordialmente, pelo eficaz uso de metáforas e
figuras de linguagem de duplo sentido – recurso amplamente empregado na poesia
profana de todos os tempos e lugares. A periquita, aqui, é o passarinho do
sujeito poético, amado e cuidado com carinho e afeição. Representa, também,
metaforicamente, a vagina da mulher e, em uma acepção mais ampla, toda a sua
sexualidade. Parece-me clara a intenção libertária da poetisa, pois ao associar
a libido da fêmea a um pássaro que deseja alçar vôo às amplidões celestes,
está-se representando a disposição de toda moça de se libertar dos grilhões da
dominação machista – a metáfora da gaiola, implícita no quadro evocado.
A
pergunta feita pelo eu lírico “quem vai querer a minha periquita?” também é
rica de possíveis interpretações. Eu ousaria, inclusive, apontar a presença de
uma espécie de filosofia existencial bastante primitiva assomando na verve
poética do populacho. Não se sabe quem quererá a periquita. De fato, não se
pode responder sequer se alguém a receberá de braços abertos! Tal angústia
existencial, resultante da incerteza sobre o futuro e bem-estar da periquita -
e também da liberdade que a mulher tem de dar a quem bem entender – quando
associada ao jogo de palavras de conotação sexual cria um efeito geral de
profunda emotividade e fôlego.
Uma águia passou pelo
meu quintal
Um vento muito forte querendo namorar
Acho que ta querendo a minha periquita
Que há muito tempo estou doida pra dar (2x)
Um vento muito forte querendo namorar
Acho que ta querendo a minha periquita
Que há muito tempo estou doida pra dar (2x)
Esta
estrofe representa, na minha opinião, o trecho de interpretação mais complexa e
difícil. A águia, como todos sabem, é um animal de carregado simbolismo, tendo
sido usado na literatura poética nos mais variados contextos. Uma das
dualidades que imediatamente vêm à mente é a distinção das forças
apolíneas/dionisíacas. A águia, ave solar, representa o falo, a masculinidade
sobrevoando o quintal da poetisa. É um espírito totêmico, poderoso, heráldico.
Seria o yang dos orientais. A
periquita, por seu lado, é lunar, um pássaro tenro e feminil, o yin. Há um contraste de desejos, até
porque não é possível, partindo apenas dos elementos que o próprio texto
fornece, saber se as verdadeiras intenções da águia são nobres. Há uma tensão
entre a energia sexual e a agressividade masculina – e não é à toa que se
escolheu uma ave predadora como signo. Não fosse assim, a poetisa apenas
confiaria sua periquita aos cuidados da águia, caso confiasse plenamente nela.
Seria
ingenuidade simplesmente excluir possíveis interpretações políticas. O gênio
latino-americano, acostumado à repressão de regimes autoritários e à tirania
dos mercados, encontra os veículos mais inusitados para expressar suas
inquietações políticas. Estamos fortemente inclinados a acreditar, portanto,
que a águia pode ser uma alusão aos Estados Unidos – cujo símbolo nacional é
exatamente uma ave desta espécie. A potência paira sobre os pássaros de menor
porte – países periféricos, um dos quais é a periquita, representante de nossa
pátria, indefesa e profundamente musical. Em seu vôo cobiçoso, a águia lança
sua sombra de terror sobre os fracos, e ameaça devorar tudo em sua insaciável
sede de poder, anunciando perfidamente a intenção de namorar (clara referência
à ALCA).
O
verso “Que há muito tempo estou doida pra
dar” é uma alusão lisonjeira à generosidade da mulher brasileira. Ao
contrário de outras, nossas musas não guardam egoisticamente seu passarinho,
deixando-o definhar na podridão do recato moral e do pudor. Ela está viva, ama,
sente, vibra! A periquita da mulher brasileira não é de um só, ela é de todos e
todas!
Já passou uma semana e
essa águia sumiu
Eu não ouvi o grito
dela por aqui
O que que eu faço pra dar minha periquita
Que há muito tempo não dá uma voadinha (2x)
O que que eu faço pra dar minha periquita
Que há muito tempo não dá uma voadinha (2x)
A
estrofe seguinte é a que coroa o poema de efeito dramático. Aqui as referências
são mais diretas, pois se pinta o quadro da história pessoal da periquita.
Toca-nos profundamente o sofrimento da pobre ave, amordaçada e acorrentada aos
cadeados da opressão, da indiferença, da apatia. Note-se que a pobre ave, em
razão das vicissitudes do destino, há muito sequer uma mísera voadinha pode
dar. Certamente, caso possuísse mais tempo e recursos, a poetisa poderia
desenvolver o que apenas esboçou nesta quadra, ampliando em termos épicos as
aventuras da periquita e da águia, no eterno conflito e busca pela harmonia.
O
texto da música é tão rico que poderíamos nos estender indefinidamente
encontrando novas leituras. Não temos espaço para tanto, portanto ressaltemos
apenas uma última interpretação, que atesta o quanto o povo pernambucano está
antenado aos principais debates da atualidade.
A
referência às aves – periquitas e águias - esconde uma preocupação ecológica da
autora. Todos sabem que a águia é uma ave típica de climas temperados e regiões
montanhosas – ou seja, de ecossistemas totalmente diversos dos em que se
encontram as periquitas brasileiras. O surgimento de uma águia faminta nas
plagas tupiniquins é um claro indício de desequilíbrio ecológico. Incapaz de
encontrar alimentos em seu hábitat – destruído pelo desflorestamento e
industrialização – a águia migra em busca de novos recursos. Sua chegada aos
trópicos agride o equilíbrio biológico local, o que é plenamente representado
pela nova e inquietante situação da periquita. A chegada da águia pode, também,
ser vista como um dos primeiros sinais do aquecimento global.
A
música também pode ser vista como uma denúncia contra o grave problema do
turismo sexual. A águia é o gringo, que chega em busca da periquita, ou seja,
das mulheres nativas e desamparadas que para assegurar sua sobrevivência
necessitam prostituir-se.
Como
se percebe, o Melo da Periquita contém muito mais riqueza que muita porcaria
pretensamente artística que se lança em nosso mercado fonográfico. Ao contrário
de maior parte dos novos expoentes da MPB – saturados ao limite da afetação
poética carioca, do apelo fácil ao samba e da repetição indiscriminada de
soluções simplórias – o Melô da Periquita assoma como representante do verdadeiro
lirismo popular, cunhado no comedimento da poesia nordestina.
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