segunda-feira, 29 de julho de 2013

Usando a Lei de Murphy a Seu Favor


 

            Intérpretes mais otimistas costumam considerar a Lei de Murphy de uma perspectiva lógica: “se alguma coisa pode dar errado, ela forçosamente dará errado, desde que tenha tempo o suficiente para isso”. O que não quer dizer que ela dará errado na primeira ou mesmo na segunda tentativa.
            Qualquer observação minimamente realista sobre o Mundo e a posição que o ser humano ocupa nele mostra-nos que não, que a Lei de Murphy está gravada na conformação do real, do mesmo modo, por exemplo, que a Lei da Gravidade. Como muito bem argumentou o Príncipe Sidarta Gautama, o Cosmos é uma gigantesca máquina de infligir sofrimentos, e o fato de sermos criaturas conscientes torna-nos, por excelência, os atores e espectadores das desgraças da vida.
            É claro que, do nosso ponto de vista, enquanto coágulos de matéria aptos à dor, quanto mais pudermos nos livrar do sofrimento, melhor. Afinal, já que não escolhemos as condições em que iríamos viver – pelo menos até onde vai nosso conhecimento! –, é justo desejar a tranqüilidade possível num universo que tende ao mal.
            Como ex-habitante de Recife, graduado em Direito e diplomata, estou profundamente familiarizado com todas as formas de desgraça que podem se abater sobre um mortal. Esse conhecimento empírico do sofrer me permitiu desenvolver certas intuições que se mostraram muitos úteis em minha busca pela tranqüilidade possível.
            Por exemplo, é uma verdade notória que muito raramente o universo concentra toda a maldade que tem reservada para uma pessoa em apenas uma modalidade de aborrecimento. Somos a todo tempo assediados por problemas de diversas ordens, sem relação aparente entre si, mas que se acumulam e se compõem para formar o quadro de nossa miséria – mais ou menos como quando a privada entope no mesmo dia em que esquecemos de pagar o boleto do condomínio. O Universo está à espreita, e tudo de que ele precisa é de uma deixa para nos assolar com abacaxis no trabalho e discussões de relacionamento.
            Uma pessoa inteligente pode usar essa característica do Cosmos a seu favor, e estou convencido de que bastará um exemplo simples para esclarecer essa afirmação aparentemente contra-intuitiva.  
             Imagine-se a cena de um assalariado que tenta voltar para casa no horário do rush. Faminto e exausto, tudo que ele mais deseja é voltar para casa, tirar a roupa social – que lhe apertava todos os meridianos identificados pela medicina chinesa – e despencar no sofá. É do interesse do Plano Geral das Coisas, todavia, que ele passe horas preso no engarrafamento, com calor, sem ter mais o que fazer além de escutar a “Voz do Brasil”. Se alguém será atropelado, se um esgoto irá estourar ou se haverá uma enchente, não importa. O certo é que o Cosmos encontrará alguma maneira de congestionar ainda mais o trânsito, aumentando, assim, a pressão arterial do trabalhador. É a Lei de Murphy em ação.
            A maneira mais inteligente de escapar dessa enrascada é tentar usar o tempo de engarrafamento para fazer alguma coisa relevante como, por exemplo, mandar uma mensagem de celular extensa para a namorada. Minhas observações empíricas mostraram que, não importa quão longo seja o engarrafamento, se o motorista começa a escrever uma mensagem no celular, o carro da frente invariavelmente avança. É um fenômeno cosmológico ainda pouco estudado pelos físicos, uma intervenção subjacente da Lei de Murphy que compensa os efeitos do aborrecimento original. Toda vez que o motorista tentar continuar digitando sua mensagem no celular, o carro da frente andará mais um pouquinho, o que o forçará a interromper o que estava escrevendo. Se o seu principal objetivo fosse efetivamente mandar a mensagem, a Lei de Murphy estaria consumada, e tratar-se-ia de mais um aborrecimento para o rol das misérias daquele indivíduo. Mas se seu principal objetivo for chegar logo em casa, então o sofrimento secundário pode ser uma excelente maneira de amenizar os efeitos do problema inicial.
            E assim, com pequenos avanços, redigindo e apagando uma longa mensagem, é possível avançar quilômetros pelo coração das mais congestionadas metrópoles.  O Universo ficará confuso, e não saberá exatamente onde deverá concentrar sua má-vontade. O gesto do motorista que tenta redigir algo no telefone – um esforço que exige concentração – não pode ser ignorado por uma entidade que existe para aborrecer. Ainda que lhe interesse manter o trabalhador preso no engarrafamento, é tentador demais atrapalhar aquele gesto concentrado, aquela tentativa de comunicação possivelmente tão importante. Pode ser que ele esteja tentando transmitir uma informação a alguém que esteja em perigo, ou talvez ele esteja avisando outra pessoa para não vir por aquele caminho engarrafado. Não, é preciso atrapalhar! Andem os carros!
            Esse é um dos exemplos mais emblemáticos, porém são várias, na verdade, as formas de usar as leis do Cosmos a nosso favor. Por exemplo, se alguém está fazendo um exame e percebe que faltam apenas dez minutos para acabar a prova, sendo que ainda faltam várias questões a serem respondidas, não resta dúvidas sobre o que fazer: é preciso apertar o cinturão, abotoando-o num furo três ou quatro vezes mais apertado do que aquele que se costuma usar. Isso criará uma sensação de desconforto terrível, verdadeira tortura nas entranhas que fará o Universo desacelerar a passagem do tempo, de forma a prolongar o sofrimento. Assim, o aluno que faz a prova terá muito mais tempo para responder as questões, ainda que tenha que tomar cuidado para não deixar a dor atrapalhar sua concentração. Se nem isso funcionar, e a pessoa perceber que faltam dois minutos para o fim da prova, sempre se pode apelar para estratagemas radicais, como, por exemplo, puxar a cueca por trás da calça, de tal modo que ela fique enfiada nos fundilhos. Esse paroxismo do desconforto multiplicará o tempo por dez, e possibilitará que as questões que faltavam sejam respondidas.
            O uso da Lei de Murphy em favor próprio é uma estratégia que só encontra paralelo, em termos de eficácia, no uso da psicologia reversa contra o Universo[1]. É preciso apenas ter algumas precauções, pois, como se sabe, entre as dimensões visíveis habitam platelmintos colossais e sem mente, que esperam apenas uma oportunidade para devorar a alma dos mortais que infrinjam alguma lei fundamental do Ser. É importante não permitir que a realidade se dê conta do engodo, ou seja, deve-se sempre dar sinais de que se está, efetivamente, sofrendo. Caso contrário, não se surpreenda se um rasgo no tecido do real aparecer enquanto você digitava uma mensagem durante o engarrafamento, e cílios prolongados arrastarem-no para um abismo gélido além da soleira do tempo, onde seu cérebro será devorado por ectoparasitas trematódios!


[1] Como se sabe, nada reduz tanto a probabilidade de que algum evento favorável aconteça quanto demonstrações de grande desejo dadas por uma pessoa. O universo tem uma psicologia aparentada com a de uma criança, e está disposto a conceder um benefício apenas nos casos em que acha que um indivíduo não deseja aquilo, ou deseja algo exatamente oposto. 

2 comentários:

  1. Esse exemplo do engarrafamento é verdadeiro, mas só mostra como o Universo, imerso em sua própria má vontade, não pensa em soluções alternativas. O ideal seria fazer com que um guarda de trânsito se aproximasse, te multasse e, portanto, te impedisse de mandar a mensagem. Durante esse processo, o carro da frente não se moveria nem um centímetro, é claro.

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    1. Para você ver que o Universo também não é essas coisas todas, ao contrário do que comumente se alardeia!

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