terça-feira, 27 de agosto de 2013

Apontamentos para uma Filosofia do Desbunde


Pensei que fosse ser meu fim. O curioso é que, da primeira vez que o pós-modernismo me foi apresentado na universidade, ele exerceu sobre mim forte apelo intelectual.
      A princípio, tudo parecia fazer muito sentido. Todo conhecimento humano é condicionado pelo contexto e pela linguagem. A comunidade epistêmica é soberana ao definir seus conceitos. Nenhuma verdade é neutra, e mesmo as leis frias da lógica estão condicionadas por determinada moldura de pensamento que pode estar associada a uma estrutura de dominação. Tudo isso, para bem dizer a verdade, apenas expressa uma inquietação antiga da filosofia ocidental: a falibilidade do logos, quer dizer, do conhecimento racional assentado sobre a palavra. O trilema de Agripa não já nos mostrara que toda verdade está forçosamente assentada ou sobre um regresso infinito, ou sobre uma escolha arbitrária ou sobre uma petição de princípios?
      O relativismo descortinou-me um mundo de possibilidades intelectuais. A tradição, a ciência, a religião, nada poderia escapar do olhar escrutinador da crítica pós-moderna. Por algum tempo, cheguei a acreditar que tal instrumental teórico seria capaz de libertar a humanidade dos grilhões que aprisionam seu espírito.
      Até que um dia, numa discussão no Instituto Rio Branco, eu finalmente me dei conta de todos os desdobramentos da filosofia pós-moderna. Ainda tentei encontrar solo firme sobre o qual pudesse assentar minhas objeções, mas tudo em vão! Era forçoso reconhecer: se todo conhecimento é relativo, então talvez o feminismo esteja certo... Intelectualmente, não há como negar este fato.
      Entrei em profunda depressão. Apesar de morar sozinho, fugi de casa e passei a me embriagar diariamente com etanol nos postos de gasolina mais imundos das cidades satélites. Plenamente convicto de que a única corrente filosófica coerente era a dos cínicos, abandonei o convívio humano e passei a viver entre os cachorros. Deixei o cabelo e a barba crescer, parei de tomar banho e de usar cueca, passei a andar de quatro e a me comunicar por latidos. Perambulava por depósitos de lixo e terrenos baldios com meus novos companheiros, dormia nas mais imundas sarjetas, me alimentava com os restos que conseguíamos encontrar em sacos de lixo furados. Tentei me suicidar sete vezes quando vi uma cadela com quem me havia envolvido fornicando com um vira-lata qualquer.
      Até que um dia, enquanto estava delirando sob efeito de oxi num dos esgotos que correm pelo Parque da Cidade, tive uma visão que me salvou da ruína completa. Em meu devaneio, meu avatar astral havia rompido o véu de Maia e perambulava além das fímbrias do multiverso. Eu flutuava num abismo avassalador de inexistência, uma vastidão ominosa, que teria me enlouquecido imediatamente se meu ego não tivesse deixado para trás toda noção de temporalidade e de espacialidade. Até que, finalmente, numa das reverberações do Om, minha alma chegou ao místico Omphal, o umbigo do Universo, o ponto sagrado onde tudo é criado e destruído.
O Meta-Vortex Primordial
      Estarrecido com a visão do meta-vortex primordial, vi emergir diante de meu terceiro olho o vulto monstruoso de Azatoth, o Sultão do Caos, o demônio cego que está aprisionado no coração da irrealidade. Sentado em seu trono de ossadas em meio ao baile eterno dos Antigos sem mente, ele abriu sua bocarra diabólica pela primeira vez em trezentos milhões de dias de Brâman e me falou, com palavras que gravaram minha alma como ferro incandescente:  
      – Quando a água bater na bunda, comece a nadar!
      Ao despertar de meu sonho dogmático, percebi que eu estava salvo. Aquelas misteriosas palavras me fizeram desvendar num átimo o segredo do pós-modernismo.
      Depois de fazer a barba, comprar algumas cuecas novas e retomar o convívio humano, percebi que meu receio face ao relativismo, em verdade, só se justificara por minha enorme tolice. Eu não havia me dado conta de que, se toda proposição oculta um discurso orientado pelo poder, não existe nada que nos permita escolher entre uma afirmação razoável e uma afirmação completamente agirobada. O relativismo não é uma arma que possa ser utilizada seletivamente! Ela torna igualmente aceitável o discurso do igualitário políticamente correto, do conservador reacionário ou simplesmente do lunático. Toda afirmação é igualmente boa e igualmente verdadeira, e o que determina qual verdade será aceita pela sociedade é simplesmente a capacidade que cada grupo possui de defender suas convicções idiotas frente a uma multidão inculta e pouquíssimo interessada em lógica formal ou epistemologia. A verdade é uma questão de psicologia de massas.
      Como eu jamais estive interessado em convencer alguém do que quer que fosse, só me interessavam os desdobramentos do relativismo no nível individual. Neste patamar, as possibilidades são infinitas! Após finalmente ter me recuperado por completo de minhas aventuras cínicas, passei por verdadeira reviravolta conceitual. Pensei com meus botões:
      “Segundo os pós-modernos, todo conhecimento pode ser igualmente válido, ou seja, não há nenhum critério de validação da verdade que se sobreponha a outro: tudo depende do contexto e dos interesses e valores envolvidos. Pode-se escolher tanto os tradicionais critérios de racionalidade como os critérios de um esquizofrênico. Porém, é preciso lembrar que a vida humana é breve e que – ainda que eu não tenha como provar filosoficamente estas afirmações – parece ser mais sensato dedicar nosso breve tempo de vida a atividades prazerosas do que a atividades aborrecidas. Ora, se tanto faz como tanto fez, então por que se aborrecer com silogismos? O único critério de validação da verdade realmente apto a tornar a vida prazerosa é a diversão!
      Fundei toda uma nova epistemologia embasada no divertimento e a batizei de Filosofia do Desbunde. Minha idéia era simples. Uma afirmação é verdadeira ou falsa não por se adequar às regras da lógica, mas simplesmente por ser ou não divertidas. O princípio é mais simples do que parece. Tomemos um exemplo prático. Aristóteles nos apresenta o seguinte silogismo como sendo verdadeiro:

      Premissa menor: Sócrater é homem.
      Premissa maior: Todo homem é mortal.
      Conclusão: Sócrates é mortal. 

      Por nosso sistema, tal conclusão é falsa, já que está muito claro que o fato de Sócrates ter que mais cedo ou mais tarde morrer não é divertido nem para ele nem para nós – que somos lembrados de nossa própria mortalidade com seu suicídio. Este silogismo, segundo minha filosofia, deveria ser reformulado da seguinte maneira:

      Premissa menor: Sócrates é meio besta.
      Premissa maior: Homem que é homem não chora.
      Conclusão: Hoje é carnaval!

      Trata-se de um silogismo estritamente verdadeiro, tão verdadeiro quanto o fato de que ontem eu brinquei de amarelinha com Sócrates (e posso assegurar que foi extremamente divertido).
      Sabendo que o leitor não acharia nem um pouco divertido se eu abusasse muito de sua paciência me alongando muito nas sutilezas de meu pensamento - o que terminaria por refutar meu próprio argumento - gostaria apenas de antecipar a inquietação das mentes mais desconfiadas, afirmando que meu sistema não é nem falacioso nem original. Ele é um desdobramento perfeitamente coerente da doutrina, atualmente tão divulgada em nossas universidades e centros de formação de opinião, de que toda verdade é relativa. Posso provar isso enumerando apenas algumas poucas convicções muito generalizadas que se enquadram perfeitamente no sistema geral de minha Filosofia do Desbunde:
      - A energia renovável vai permitir que a civilização continue se desenvolvendo.
      - Não existe uma natureza humana: a explicação para nossos males são todas sociais e culturais.
      - Um país tem que gastar mais do que arrecada para se desenvolver.
      - Pensamento positivo faz toda a diferença.
      A estas percepções, acrescentaria as seguintes constatações práticas elaboradas por mim enquanto sofisticava meu pensamento:
      - Para ser capaz de voar, basta querer.
      - Mulheres escandinavas morrem de tesão por cearenses.
      - Minhas crônicas são muito interessantes.
     
      É tudo verdade, e tudo muito divertido!

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Mínimas

I - Maquiavelismo Chinês
Os meios justificam os meios.
II
Pessoas: um bem fungível ou um mal necessário?
III
O trânsito é um jogo de soma zero.
IV
 Conheço pessoas que só não praticam magia negra para se dar bem na vida por uma razão muito simples: magia negra não funciona.

V

Dirigir no DF torna-se tão mais fácil quando se entende que todos os caminhos vão dar no mesmo lugar: na casa do caráleo.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

O Plano Perfeito



Como pode ter dado errado?
1990. O ano em que entendi do que a escola realmente se tratava. Até então não ligava de ter que passar algumas horas de meu dia na Casinha da Cultura. Foi lá que conheci alguns bons amigos, com quem costumava desenhar monstros e explorar o jardim, sob o inacreditável azul do céu cratense. As refeições comunais – ou “hora da meranda”, como, naqueles anos idos, nós as chamávamos – eram momentos de alegria e confraternização, quando podíamos trocar impressões sobre esse ensolarado universo em que havíamos acabado de chegar. Eu gostava do pão com ovo, da banana frita, do suco de caju em caixinha. Sobretudo, ainda acreditava que a “Tia” fosse nossa aliada.
            Então veio o ABC. Então veio a caligrafia. Vou ser honesto, nunca tive muita dificuldade de aprender as letrinhas. Ficava até surpreendido com a desolação de alguns colegas, que penavam para passar do "E". Mas esse não era o ponto. A Tia dava os primeiros indícios de estar a serviço de um desígnio secreto que os adultos tinham bolado para nós, e que nós com certeza teríamos abominado caso ele nos tivesse sido esmiuçado em detalhes.
            Perder os melhores anos estudando álgebra, tornar-se um cidadão respeitável, ter que todas as manhãs enlaçar o pescoço com uma tira de seda que nos apertará a goela o dia inteiro? Enquanto o mundo estava – como nós, assíduos espectadores de Jaspion, sabíamos muito bem – cheio de monstros e dinossauros? Longe de nós, com sua cara redondinha, tracinho para lá. Você não é nossa amiguinha, você quer é lascar-nos a vida!
            Escapar era preciso. Sabe lá Deus que rotina enfadonha o futuro me guardava. Aos 6 anos, eu ainda tinha uma chance.
            6:00 hs da manhã. Levantei-me mais cedo e vi que meu irmão ainda dormia. Eu não tinha um segundo a perder. Desci do beliche e vi, pelas frestas da janela, que estava uma linda e quente manhã do inverno sertanejo. Os passarinhos cantavam feito doidos, felizes de não partilharem as misérias humanas.
            Meus pais acordavam cedo, por isso todo cuidado era pouco. Ainda de pijama, vi pelo corredor que a porta do quarto deles estava fechada. Bom sinal, talvez eles ainda estivessem se arrumando para ir ao trabalho. Desci correndo as escadas e, seguindo o estratagema que havia mentalmente ensaiado até altas horas da noite anterior (até umas nove horas, imagino), fui até a copa, arrastei cuidadosamente uma cadeira até a parede e roubei o relógio.
            Tomando cuidado para não ser visto, abri a porta da frente, cumprimentei os cachorros – velhos companheiros, que com um olhar de cumplicidade e uma lambida asseguraram-me que meu segredo estava em boas patas – destranquei o portão e ganhei o mundo. 
            Livre! Lembro que senti uma excitação correr-me o corpo todo quando me vi só na rua. Estava uma manhã linda, com o sol brilhando forte no verde dos pés de oiti. Na imensidão azul que pairava sobre minha cabeça, só uma ou outra nuvem bem branca, como algodões ou sonhos num sono infantil. Doía-me um pouco pensar que eu tinha deixado para trás os confortos do lar. Mas eu não tinha opção, eu não agüentava mais aquela chatice em que a escola se havia tornado. Jamais considerei que o alfabeto pudesse me ensinar algo mais relevante do que o que eu intuitivamente já tinha aprendido – que o bom mesmo nessa vida é jogar pedra na lua e correr desembestado sob do sol. Sim, eu viveria sem bolachas de chocolate e danoninho, se esse fosse o preço a pagar pela liberdade.
            Continuei caminhando despreocupado pela rua de calçamento, esforçando-me para não chamar a atenção. Não teria me passado pela cabeça que alguém poderia desconfiar de uma criança de seis anos branca e loira, de pijama e sandália japonesa, caminhando sozinha pelas ruas do bairro do Sossego com um relógio de parede debaixo do braço. Meu plano parecia-me infalível. Iria pelas ruas de pedra até a entrada de uma trilha que eu havia descoberto com meu companheiro de explorações, Ulissinho[1]. Por ela eu avançaria até as margens do Rio Granjeiro, no meio do qual está situado o mais intrigante monumento geológico jamais descoberto por habitante do Sossego: a temível “Pedra com Cara”, um gigantesco pedregulho com olhos, boca e nariz – provavelmente obra de alienígenas ou homúnculos do subterrâneo, ao menos segundo as teorias que eu e Ulissinho desenvolvêramos após rigorosas investigações.
            Sentado em cima da rocha, eu usaria o relógio de parede para saber exatamente a hora em que meu pai iria trabalhar.A vantagem de ter um pai obstetra é que as mulheres não adiam a hora do parto simplesmente porque o filho do médico pôs na cabeça que não iria para a escola naquele dia. Também não achava que ele fosse atribuir exagerada importância ao meu desaparecimento, já que tinha indícios para acreditar que os adultos tinham coisas mais importantes com que se preocupar. Eu estava seguro, portanto, que no mais tardar às sete e meia meu pai já teria ido ao Hospital. 
            Chegada a fatídica hora, eu retornaria do meu refúgio fluvial e voltaria para casa. Vestiria uma roupa decente e tentaria achar algum dinheiro. Mesmo que não conseguisse encontrar, meu destino era certo. Iria para o último reduto das crianças desgarradas e sem futuro, o porto seguro dos desocupados, onde podíamos, em troca de alguns cruzeiros, ser indulgentes com nossos vícios e desfiar as horas com divertimentos jamais sonhados em sala de aula: a Center Games.
            Era a época do Mega Drive e Sonic tinha acabado de ser lançado – pelo menos no Crato. Eu planejava passar horas, dias inteiros jogando e assistindo as partidas de outros viciados. Enquanto meus colegas de escola labutavam no caderno de caligrafia, eu estaria tranquilamente colecionando argolas e ajudando os animais da floresta a escapar da vilania do Dr. Willy.
            Sim faria isso e muito mais com os outros habitués daquele antro de permissividade – como um certo sujeito chamado Gasolina, que sempre estava por lá, mesmo sem ter um tostão para pagar uma partida – e pouco estaria me lixando se um meteoro varresse do mapa a Casinha da Cultura! Às favas com o ABC e com as sopas de letrinhas!
            Eu poderia ter sido livre. Talvez hoje eu fosse um habitante das ruas e das florestas, com longos cabelos desgrenhados e uma temível barba, e teria por companheiros apenas os mocós e os passarinhos. Viveria da coleta de frutos silvestres, e usaria o pouco dinheiro que conseguisse obter vendendo caroços de macaúba na feira do Crato para jogar vídeo-game na Center Games – que ainda hoje existe, num novo endereço. E eu seria livre, não teria que usar gravata, nem carregaria sobre os ombros o peso de um terno. Sim, poderia ter sido a minha vida, se logo depois que eu dei a volta na segunda esquina uma pampa não tivesse aparecido no meu encalço. Era o meu pai, que ao ter se dado conta do sumiço do relógio de parede, percebeu que alguma coisa devia estar errada.
            Cá estou hoje, engravatado.
***


            Ah, Ulissinho, o que é de nós? Estará a Pedra com Cara ainda no leito do Rio Granjeiro, ou já terá alguma enchente a carregado para longe, do mesmo modo que a vida carrega os sonhos? Meu caro amigo, a verdade é que o sol nunca deixou de brilhar durante as horas que nós passamos enfurnados em salas de aula, escritórios e consultórios.


[1] Cabe, aqui, observar que as crianças de antigamente eram criadas soltas pelo mundo afora não porque o mundo fosse menos perigoso. Naquela época havia tantos delinqüentes, assassinos e psicopatas como hoje, e ainda havia o agravante de naqueles tempos as matas estarem infestadas de todo tipo de caipora, papa-figo e assombração. Acontece que as crianças  simplesmente eram mais intrépidas que as de hoje, que se traumatizam com formas bullyings que, em nossos tempos, eram interpretadas quase como manifestações de apreço.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Mínimas





I

– O poeta finge a dor.O sertanejo canta a dor.

 – E tu?

– Gozo a dor. 

II


Na Academia

A vida é curta demais para malhar perna.

III

A semana tem cinco dias úteis e sete dias fúteis. 

IV


O risco de tentar negar a realidade é que a realidade pode tentar negar você.


V


A teoria crítica esclarece: insignificante e insignificado.