Em homenagem às minhas férias, que chegam, um texto ameno com as minhas opiniões pessoais sobre o turismo - que eu mesmo pretendo fazer a partir deste sábado.
Em razão do iminente ócio programado, não atualizarei o blog pelas próximas duas semanas.
Eu sei, será duro viver sem meus textos...
A Administração
Em razão do iminente ócio programado, não atualizarei o blog pelas próximas duas semanas.
Eu sei, será duro viver sem meus textos...
A Administração
Quero aqui abordar um problema da mais elevada importância histórica.
Como se sabe, a historiografia atribui grande peso às contradições e
fragilidades internas do Império Romano ao tentar explicar sua gradual e
definitiva queda. Contudo, jamais se deixou de considerar a importância das invasões dos bárbaros germânicos ao se analisar o fenômeno. Os
próprios contemporâneos narram com grande aflição a chegada das hordas do
norte, e a destruição que eles deixaram atrás de si.
Até hoje não se sabe exatamente o que provocou esse grande movimento migratório
das populações teutônicas em direção ao sul. Alguns acadêmicos acreditam que o
avanço dos hunos, vindos das estepes da Ásia Central, forçou os germânicos a
buscar novos territórios a sudoeste. Outros acham que a pressão sobre as
fronteiras de Roma existia desde muito cedo, e que a fragilidade do Império
apenas tornou possíveis incursões que antes eram impedidas pelas legiões
imperiais.
Evidências historiográficas recentemente descobertas vêm, todavia, pondo em
xeque a capacidade elucidativa das velhas explicações. Uma compreensão mais aprofundada
das condições de vida dos invasores – bem como de suas motivações – vêm
tornando possível novos insights sobre o problema.
Os arqueólogos vêm descobrindo que as tribos teutônicas viviam – ao contrário
do que se pensava – numa situação de grande prosperidade material. A exportação
de cerveja e de carroças – cuja qualidade era reconhecida em todo o mundo
civilizado –, sua moral de trabalho diligente e hábitos de consumo
parcimoniosos possibilitaram às sociedades do norte europeu o acúmulo de
excedentes econômicos. Suas cidades eram prósperas, organizadas, com excelentes
escolas e sistema de transporte público invejável. O que nós hoje chamamos de
bárbaros germânicos eram populações endinheiradas, educadas e – por que não
admitir – ligeiramente entediadas com a previsibilidade da vida em seus reinos
eximiamente administrados.
Justo àquela época, Roma alcançava a saturação de seu expansionismo. O domínio
militar e econômico que eles impuseram em todo o Mediterrâneo trazia para a
capital do Império povos e riquezas dos mais afastados cantos da terra. Era uma
metrópole fervilhante, com excelente pão e excelente circo. A administração
corrupta da cidade, desonerada da necessidade de sustentar materialmente as
expedições militares que em outros tempos haviam expandido as fronteiras, agora
se dedicava à construção de monumentos deslumbrantes e à promoção de
mega-eventos para as irrequietas massas de plebeus.
Não demorou para que a fama da Cidade Eterna alcançasse os reinos do norte. As
famílias mais endinheiradas começaram a ver como um sinal de status a
possibilidade de fazer uma viagem internacional. Nas altas rodas, não raro se
ouviam discussões sobre as maravilhas das sete colinas, sobre o Capitólio, o
Mercado de Trajano...
– Próximo ano meus filhos vão numa excursão assistir aos
jogos dos gladiadores no Coliseu. – era um comentário que não raro se escutava
nos salões godos e visigodos.
– Ah, sim? Pois meu pequeno Odorico está indo fazer
intercâmbio de um ano na Siracusa.
A cultura clássica se tornara uma predileção das industriosas
mas culturalmente insípidas bestas loiras do norte. Panfletos falando sobre as
maravilhas da “cidade que nunca dorme” começaram a ser distribuídos nos
principais feudos. As louras e rechonchudas donzelas teutônicas adquiriram uma
queda pela culinária da península itálica.
– Você já comeu no Pastas Estruscorum?
– Sim! É uma delícia! É o único restaurante da cidade com
três coroas de louro no Guia Michelonius. Você já provou o tagliatellus
carbonaris de lá? É divino!
As vanguardas elitistas abriram caminho para uma das mais
truculentas invasões históricas jamais registradas. Em
pouco tempo, as vias do Império foram tomadas de assalto por hordas de turistas
ávidos por novidades.
Os efeitos, como não poderiam deixar de ser, foram catastróficos. As ruas
encheram-se de sujeira, as estalagens viviam lotadas e, pior de tudo, os preços
dispararam, com efeitos sentidos no cotidiano dos habitantes locais. Uma
refeição que antes custava apenas alguns denários passou a custar vários
áureos. Tomar vinho tomou-se impraticável, e os estabelecimentos mais badalados
– como o próprio Pastas Etruscorum – tornaram-se proibitivos mesmo para os
patrícios.
Foi nesse período, também, que se agravou a política imperial dos mega-eventos.
Rios de dinheiro público foram utilizados para construir e ampliar os estádios
onde aconteciam combates entre lutadores de MMA – naquela época conhecido como
gladiadores. Só a reforma do Coliseu, por exemplo, deixou os cofres públicos
profundamente endividados. Isso para não falar dos bandos de vândalos que –
embriagados e ultra-excitados com as carnificinas – faziam arruaça pelas ruas
da cidade depois dos espetáculos.
Além disso, templos e construções de inegável valor histórico
foram derrubados para darem lugar a parques aquáticos – ou banhos públicos.
Toda a perspicácia dos engenheiros foi revertida das obras de utilidade pública
para construir enormes aquedutos para abastecer esses templos do ócio e da ostentação,
onde prostitutas vindas das províncias asiáticas ofereciam técnicas secretas de
massagens aos executivos dispostos a pagar algumas moedas a mais.
Também foi nessa época que a saturnália – ou carnaval –
tornou-se a grande celebração da desagregação cósmica que é ainda hoje. A
antiga e singela festa de agradecimento aos deuses da fertilidade foi
transformada num mero pretexto para uma multidão de turistas adolescentes
embriagados fazerem todo tipo de obscenidade nas vias públicas, ao som de
contagiantes hits tocados por músicos da província africana.
Os efeitos sobre os monumentos, também, foram devastadores. Acredita-se, por
exemplo, que o Capitólio tenha tornado-se a ruína que é hoje por causa da
multidão de turistas vândalos que todos os dias visitavam suas instalações. Sem
se preocupar em preservar o patrimônio cultural e arquitetônico da cidade, eles
subiam onde não deviam, entupiam os banheiros, jogavam papiros no chão e – o
que talvez tenha causado mais estrago – ignoravam peremptoriamente as
recomendações dos guias e arrancavam pedaços da arquitetura para levar como souvenir
para casa.
Mas não resta dúvida de que a verdadeira derrocada de Roma aconteceu por razões
econômicas. Os grandes proprietários rurais, atraídos pela nova perspectiva de
ganhos fáceis nas capitais, deslocaram enormes contingentes de lavradores para
os recém-abertos parques temáticos e cassinos. Os escravos que antes eram
responsáveis pelo cultivo da terra passaram a atuar como figurantes de legionários
e centuriões, ou encenavam musicais de apelo fácil sobre a Eneida ou os poemas
homéricos. Como resultado, a sociedade romana entrou numa fase de profunda
carestia, e os alimentos quase desapareceram dos mercados. A entrada de grande
fluxo de moeda trazida pelos germânicos endinheirados agravou ainda mais a
inflação, com efeitos pesados sobre o poder aquisitivo da plebe. Foi só uma
questão de tempo até eclodirem as primeiras revoltas.
Além disso, os grandes chefes tribais do frígido Norte, encantados com o clima
mais ameno do Lácio, passaram a comprar propriedades nos subúrbios de Roma e
nas regiões agrícolas. Ao fazer isso, eles implantavam no Império as técnicas
germânicas de produção, e substituíam o antigo escravismo pela servidão. A paisagem,
antes pontilhada por agradáveis e iluminadas villas de arquitetura clássica, em
pouco tempo se viu abarrotada de soturnos castelos góticos, tão ao gosto dos
milionários visigodos.
Há quem acredite que a política de isenção de vistos foi a verdadeira causa da
queda do Império Romano do Ocidente – já que o o Império do Oriente, onde as
políticas migratórias eram muito mais rigorosas, sobreviveu por quase outro
milênio inteiro, até a tomada de Constatinopla pelos turistas turcos. Todavia, o
tema ainda é objeto de debate acadêmico, e não são poucos os pesquisadores que
acreditam que Bizâncio só pode sobreviver por causa dos preços das passagens
nas galeras – que, ao permanecerem altos por causa do intenso comércio com a
Ásia, impediu que as hordas teutônicas chegassem até aquele lado do mundo
conhecido. Outros acreditam que os monumentos orientais – mais singelos e menos
imponentes que os da capital – não eram muito do gosto dos turistas bárbaros,
mais ávidos por uma arquitetura grandiloqüente e pretensiosa.
Em que pesem as divergências teóricas, pouco a pouco se consolida todo um ramo
de estudo sobre a relação entre a decadência de uma civilização e o aumento do
turismo. Alguns historiadores mais alarmistas, por exemplo, ao entenderem
melhor o mecanismo que levou à destruição de Roma, já começam a apontar o fato
de o continente europeu ter se tornado um enorme museu a céu aberto –
especialmente para os turistas vindos da Ásia do Leste – já pode ser
interpretado como o sinal definitivo do fim da Civilização Ocidental.
Será talvez o início de uma nova idade das trevas, em que o conhecimento
terá de ser preservado nas bibliotecas de mosteiros, que tentarão resistir às
investidas de hordas de jovens mochileiros tirando fotos com seu smartphone das
refeições que pedem no exterior e publicando no instagram.
Não será um sinal dos tempos que o primeiro volume do estudo
“Declínio e Queda da Civilização Europeia”, do pesquisador cearense Eduardo
Gibão, tenha estampada em sua capa a foto de uma turista brasileira sorrindo em
frente à Torre Eiffel?