O título desse
texto soa terrivelmente presunçoso. Parece até que o autor se supõe em posição
de julgar a imbecilidade alheia como se possuísse alguma formidável capacidade
de percepção.
Quero desde já desfazer esse erro.
Sou fascinado pelo problema da estupidez, mas não por me considerar mais
inteligente ou mais sábio. Na verdade, talvez eu queira compreendê-la melhor
justamente como forma me precaver contra ela – intuindo que a
imbecilidade seja um risco constantemente à espreita. Sou bacharel em Direito, nada
do que é idiota me é estranho.
Sempre me impressionei com a
capacidade de pessoas muito inteligentes tornarem-se, em certos contextos,
completos imbecis. Ainda que o dicionário defina "idiotia" como falta
de entendimento, eu nem de longe acho que ela se confunda com a mera burrice – vista essa como simples incapacidade de processar informações.
Por exemplo, é comum encontrar pessoas
educadas e perspicazes que, quando decidem falar sobre um assunto que lhes seja
caro, transformam-se de súbito em completos imbecis. Eles se tornam, então,
incapazes de levar em conta as evidências mais elementares, e deixam-se levar
por meras impressões, fundamentadas por não mais que pelo desejo de que as
coisas fossem do jeito que eles queriam que as coisas fossem. Isso acontece
quando as opiniões são passionais, quando o assunto que está sendo discutido
afeta emocionalmente os debatedores.
Tal percepção já nos basta para
entender que aquilo que estou chamando de "idiotice" não é apenas um
problema intelectual (ou seja, um problema que diga respeito apenas a ideias), já
que também possui uma forte dimensão sentimental. Mas será que é apenas isso?
Será que apenas as paixões explicam a tendência das pessoas à idiotice? Suspeito
que não. Acho que essa inclinação tem uma raiz mais profunda.
Certa vez eu estava dialogando com
uma pessoa que tem opiniões fortes sobre a temática do igualitarismo. Sem
sequer entrar no mérito de quem estava certo ou errado nessa discussão,
confesso que me senti surpreso quando percebi que meu interlocutor tinha,
dentro de sua cabeça, todo um esquema narrativo montado para sustentar suas opiniões.
Em última análise, talvez o mesmo
acontecesse comigo – embora em meu favor eu pudesse pelo menos alegar a
abertura à dúvida quanto às minhas próprias convicções. A pessoa com quem eu
estava discutindo, porém, por ter uma personalidade
exaltada, estava tão enclausurado em seu próprio discurso que ele permitia que
sua narrativa se tornasse quase uma caricatura.
Para ele, os papéis eram muito nitidamente
definidos. Havia dois tipos de pessoas intrinsecamente distintas: umas boas e
outras ruins. Elas estariam engalfinhadas num verdadeiro drama histórico, cujo
desfecho era determinado de antemão, com a derradeira vitória dos que
representavam o progresso. O mais curioso, porém, era a capacidade dessa
narrativa de dar sentido a tudo o que acontecia. Um gesto não era apenas um
gesto – ele era forçosamente uma tomada de posição na disputa. Sendo assim, qualquer
declaração poderia ser interpretada tanto como expressão de uma postura
libertária ou como um comentário reacionário, a serviço da inércia histórica
Não há fatos neutros – era isso que
meu interlocutor parecia me dizer. Tudo tem um sentido, tudo tem uma intenção
subjacente. O que parece um ato inconsciente é, na verdade, uma intenção velada
– ou a adesão subliminar à agenda do partido retrógrado. Não é difícil perceber
como essa maneira simplista de interpretar as coisas desemboca naturalmente numa
"teoria da conspiração": como todo acontecimento é resultado direto
de uma intencionalidade planejada, então tudo o que acontece no mundo – todas
as injustiças, tudo aquilo que fere nosso senso de dignidade – deve ser fruto
das maquinações obscuras de poderosas forças que conspiram para manter a
humanidade do jeito que está.
É espantosa a quantidade de jovens
perspicazes que se deixam convencer por relatos assim. Vejam lá, não estou
negando a realidade da opressão do homem pelo homem – nem dizendo que não
aconteçam manipulações políticas pelas classes endinheiradas. Mas acho
realmente espantoso que algumas pessoas se contentem, ao tentar analisar um
fenômeno social complexo, com explicações que poderiam ter saído de um romance
barato!
Por que isso acontece? Eu diria que
é porque o ser humano é uma criatura que interpreta sua própria vida por meio
de narrativas.
Por que gostamos tanto de estórias? Por
que os mitos são tão importantes para os povos primitivos? Por que a literatura
tem uma capacidade tão grande de nos sensibilizar? Não é apenas porque narrativas nos divertem, mas sim porque são elas que dão sentido à vida. Os fatos
brutos nada significam – eles são acontecimentos aleatórios de um mundo que,
sem a mediação da fábula, nos pareceria terrivelmente alienígena. O fato
só é humanizado quando ele se encaixa em algum relato mental. Então um
objeto inanimado deixa de ser apenas um amontoado de matéria, e se transforma
numa lembrança de uma pessoa querida. Uma doença ou um acidente deixam de ser
um mero fruto do acaso cego, e se transformam em importantes etapas de nosso
amadurecimento. Amigos e inimigos assumem papéis, e a vida divide-se
em diversas etapas, seguindo um senso de progressão de efeito dramático, no
qual avanços e recuos fazem parte do aprendizado.
Não é irrelevante que usemos a mesma
linguagem tanto para relatar acontecimentos que efetivamente ocorreram como
para falar de mundos ou de narrativas fantasiosas. Nossa linguagem nos permite mentir
e criar universos imaginados – realidades-simulacro que, por refletirem nosso próprio
mundo, nos ajudam a compreendê-lo. Quando a ficção nasceu, com ela vieram
todos os possíveis sentidos para a vida humana. Que a vida possa ter um sentido
não já é a derradeira ficção?
Estou convencido de que as estórias
possuam um papel incontornável em nossa maneira de perceber a vida. Do mesmo
modo que a mente só é capaz de apreender objetos concretos e abstratos por meio
dos conceitos, não podemos prescindir de narrativas para registrarmos a passagem
do tempo. É algo que se explica pelo papel que a linguagem possui na formação
de nossa consciência: não possuímos outros meios de nos referirmos à
experiência vivida. O homem é o animal que fabula – e tome mais uma frase de
efeito!
Isso não significa, claro, que
estejamos condenados à mentira. O mito não é necessariamente uma inverdade. A
realidade é objetiva, mas essa objetividade só pode ser alcançada pela mediação
das estórias. O problema é que existem narrativas boas e narrativas ruins.
Enquanto algumas são capazes – com sua riqueza de elementos ou de simbolismos –
de nos aproximar do problemático ideal de verdade, outras servem apenas para
simplificar ou banalizar nossa experiência, dando-nos respostas prontas e
fáceis para os muitos dilemas que encontramos no dia-a-dia.
Exemplo clássico de imbecilidade é o
do indivíduo que se ilude quanto à pessoa amada. Seja uma mãe conivente, seja
um marido enganado, a pessoa idiota constrói para si um verdadeiro castelo de
cartas em que o que menos interessa são as verdadeiras características da pessoa
querida. Uma vez que se tece a narrativa e se atribuem os papéis, o indivíduo
torna-se tão deslumbrado com seu próprio enredo que pode chegar a negar
ardorosamente indícios sobre a má índole daquele que ama, ou até ofender-se
se alguém vier lhe falar a verdade.
O que vale para os aspectos
cotidianos da vida também vale para as grandes narrativas – a política, a religião,
a ciência. Esses meta-discursos têm uma função muito mais abrangente – e perigosa
– já que eles servem de referência moral para a sociedade inteira. E enquanto a
imbecilidade privada comumente causa mais mal ao seu possuidor do que a
terceiros, a idiotice pública, por ter a seu favor o peso das multidões, tem a
terrível aptidão de causar mal aos inocentes. Todas as vítimas de fracassadas
utopias são, em alguma medida, vítimas de uma estória mal contada.
Na minha interpretação, a idiotice
humana nasce de uma capacidade pobre de fabulação. Ela se origina da tentativa
(quase sempre inconsciente) de usar narrativas ruins para explicar ptoblemas
complexos. O idiota é um homem que usa moldes fixos, rigidamente
compartimentados, para julgar o que vê. Ele não tem sensibilidade para nuances, e não é capaz de entender que a vida
possui mais de uma camada de significados. E mesmo diante do notório fato de as
pessoas serem contraditórias e terem motivações problemáticas, ele sempre
incorrerá nas mesmas velhas suposições simplistas – chapeuzinho vermelho para
cá, lobo mau para lá...
Curiosa conclusão: embora seja
possível nascer burro, não se nasce idiota. Aprende-se a sê-lo ao longo da
vida, pela aculturação e à medida em que se vai definindo o repositório pessoal de
estórias da carochinha com que medir a vida. Outro desdobramento interessante: minha
maneira de interpretar a idiotice valoriza a literatura como possível remédio.
Os livros não são apenas fantasias: eles são um repertório de experiências,
emoções e intuições. A boa literatura, ao assumir radicalmente a complexidade
da vida, torna-nos capazes de reavaliar nossa existência de forma mais rica e
completa. Ela nos educa para a fábula – essa mediação fundamental entre nós e o
real – e, ao nos permitir um pouco mais de consciência dos papéis que exercemos,
ela pode até mesmo nos permitir uma maior medida de protagonismo. Resumindo, a
literatura é o remédio para a prosa ruim, quer dizer, para a vida ruim.