Se o POEMA CONJECTURAL de Jorge
Luis Borges tivesse uma trilha sonora seria o Bolero de Ravel.
Não me interessam as motivações
biográficas que levaram Maurice Ravel a compor essa música. Aprecio a melodia,
o que ela é, sua forma exterior. A objetividade do resultado. A obra de arte é
uma criatura independente, livre até certo ponto da vontade do criador.
E o que ouço no Bolero de Ravel?
Uma melodia marcial e melancólica. Um hino de guerra mais sereno. O canto de um
soldado derrotado, mas confiante. Um espírito crescente que ruma triunfalmente
para... a morte!
São paradoxais meus sentimentos.
Marcial e melancólico. Guerreiro e sereno. Derrotado e confiante. O triunfo e a
morte. Mas a harmonia musical é capaz de expressar contradições sem
exacerbá-las, antes integrando-as. A harmonia é, por definição, a conciliação dos
opostos. A simples justaposição de elementos iguais não é harmonia, mas
simetria.
A harmonia é a linguagem da
música por excelência. E talvez seja também a linguagem da Sabedoria. Os homens
mais sábios que conheci na vida foram capazes de conviver pacificamente com os
paradoxos da realidade: justiça e misericórdia, prudência e coragem, vida e
morte.
Pare um instante. Ouça um pouco
mais do Bolero.
Se eu fosse cineasta, faria um
curta-metragem com a cena do poema que você vai ler agora e a trilha sonora do
Ravel. É estupendo. Borges conjectura sobre os últimos instantes da vida de um
combatente. Imagino o homem andando em meio às ruas perigosas. É uma guerra
civil. Ouvem-se os cascos dos cavalos de seus algozes. Seus minutos estão
contados porque ele, o doutor Francisco Laprida, pertence ao partido vencido.
Ele é um político instruído, advogado, que dedicou seus ideais à causa da nação.
Mas que adianta? Seus inimigos o vêem como um traidor da pátria. Que cena
mais típica da América Latina: “pronunciamientos”, golpes de estado sucessivos.
Sangue derramado por divergências políticas ontem, hoje e sempre. Passam-se
séculos, entra governo, sai governo, faz-se uma nova constituição e as
circunstâncias não mudam. É como um suceder de estações: o eterno retorno do
inverno. Ontem era ditadura de esquerda, hoje de direita. E a melodia de Ravel
recomeça do mesmo ponto no compasso seguinte. Esse podia ser o hino de milhares
de Franciscos Lapridas que rumam triunfais para morrer. O que terá se passado na cabeça desse homem?
POEMA CONJECTURAL
22 de Setembro de 1829 pelos «montoneros» de
Aldao, pensa antes de morrer:
Zumbem as
balas pela tarde última
Há vento
e há cinzas sobre o vento,
dispersam-se
o dia e a batalha
disforme,
e a vitória é dos outros.
Triunfam
os bárbaros, os gaúchos.
Eu, que
estudei as leis e mais os cânones,
eu,
Francisco Narciso de Laprida,
cuja voz
declarou a independência
destas
cruéis províncias, derrotado,
de sangue
e de suor manchado o rosto,
sem
esperança nem medo e perdido,
vou para
Sul por arrabaldes últimos.
Como
aquele capitão do Purgatório que,
debandando
a pé e ensanguentado
o plaino,
a morte fez cegar, tombar
lá onde
um rio obscuro perde o nome,
assim
hei-de eu cair. Hoje é o termo.
A noite
lateral de infindos pântanos
espia-me
e demora-me. Oiço os cascos
da minha
quente morte que me busca
com
ginetes, com belfos e com lanças.
Eu que
ansiei ser outro, ser um homem
de
sentenças, de livros, de ditames,
sob o céu
jazerei entre lameiros;
mas
endeusa-me o peito inexplicável
um júbilo
secreto. Entretanto enfim
o meu
destino sul-americano.
A esta
fatal tarde me levava
o
labirinto múltiplo de passos
que meus
dias teceram desde um dia
da
meninice. Descobri por fim
a
recôndita chave dos meus anos,
a sorte
de Francisco de Laprida,
a letra
que faltava, essa perfeita
forma que
soube Deus desde o princípio.
No
espelho desta noite recupero
o meu
insuspeitado rosto eterno.
Vai-se
fechar o círculo e aguardo.
Pisam
meus pés a sombra dessas lanças
que me
buscam. A mofa já da morte,
os
ginetes, as crinas, os cavalos
adejam
sobre mim...Já o primeiro
golpe me
fende o peito, o duro ferro,
a faca
interior sobre a garganta.
Muito bom.
ResponderExcluirA primeira vez em que ouvi Bolero de Ravel tive outra interpretação: era a música das dores de alguém com prisão de ventre!