sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Schopenhauer, as Ideias Platônicas e a Teoria da Evolução



Eduardo Siebra, 14/02/2014

                No terceiro livro de "O Mundo como Vontade e Representação", Schopenhauer estabelece uma interessante conexão entre o pensamento de Kant e o de Platão.  Como se sabe, o autor considera a coisa-em-si kantiana como sendo a Vontade (não a vontade individual, mas sim a Vontade entendida enquanto totalidade, da qual o mundo sensível deriva enquanto objetificação. Veja o que escrevi a respeito neste link). Tudo o que vemos, sentimos e cheiramos é representação – ou, para usar a terminologia kantiana, fenômeno. Trata-se da Vontade transformada em objetos que podem ser conhecidos pelo sujeito, ou seja, manifestada num mundo do tempo, do espaço e da causalidade.
                Porém, entre a noção absoluta de Vontade (ou coisa-em-si) e os objetos de nosso conhecimento existe uma etapa intermediária que, segundo Schopenhaer, seriam as Ideias na acepção platônica. Não se tratam, portanto, de ideais em seu sentido habitual (ou seja, pensamentos abstratos que temos dentro de nossa mente), mas sim de "tipos" ou "arquétipos" de que derivam os objetos sensíveis e que também são manifestações da objetidade da Vontade (ainda que num nível menos concreto).
                É provável que um leitor contemporâneo de Schopenhauer talvez se deixasse iludir pelo que pode parecer ingenuidade na formulação platônica sobre as Ideias. Tendo sido exposto às derivações da chamada "virada linguística" (que reavaliou o papel da linguagem na formação de nosso pensamento) e, principalmente, já possuindo conhecimento sobre a revolucionária noção darwinista da Teoria da Evolução (segundo a qual a atual forma dos seres vivos não é necessária, mas deriva de um longo e cego processo de seleção natural que foi, ao acaso e segundo acidentes de percurso, dando forma às criaturas que conhecemos hoje em dia), esse presunçoso leitor poderia se sentir tentado a supor que a noção filosófica das Ideias platônicas é uma mera projeção humana da forma do conhecer na realidade conhecida.
                Essa suposição realmente é sedutora, à luz da consciência de nossos tempos. Talvez Platão (e, por consequência, Schopenhauer) tenha errado ao reverter inconscientemente o processo que se verifica no ato do conhecimento. Quando deparado com a pluralidade de objetos do mundo, nossa mente – que está assentada num fabuloso mecanismo de generalizações: a linguagem – formula os conceitos, ou seja, modelos mentais que tem a utilíssima função de permitir-nos agrupar diferentes objetos numa mesma denominação. Os conceitos são nossa resposta à infinita complexidade do mundo: ao invés de supormos que todo e cada fenômeno é único, nós criamos generalizações que nos permitem atribuir sentidos. Porém, esse processo é espontâneo e irrefletido, ou seja, ele acontece naturalmente com todo ser humano capaz de pensar. Isso significa que, embora todos sejamos capazes de usar conceitos, nem todos temos consciência de que usamos os conceitos para conhecer o mundo e refletir sobre ele.
                O suposto erro de Platão seria o de ter imaginado que esse fenômeno mental seria um atributo da própria realidade. Ou seja, por não ter ido tão fundo na investigação sobre o papel da linguagem na formação da mente, Platão teria suposto que as categorias de seu pensamento eram, na verdade, formas do próprio universo! A ideia de cavalo, por exemplo, não seria uma generalização da mente humana, mas sim a expressão de um plano ou esquema objetivo e universal, oculto por trás das diferentes aparências do mundo sensível. Ou seja, que o cavalo tivesse quatro patas, relinchasse e tivesse uma crina é algo necessário, derivado da conformação originária do universo.
                Além disso, as Ideias platônicas fazem sentido num mundo estático, ou seja, num mundo em que as criaturas mantém sempre a mesma forma ao longo do tempo. Para um homem da antiguidade, era natural imaginar que a realidade tivesse um plano pré-determinado, já que as formas exteriores aparentemente eram constantes. Mas como continuar mantendo essa suposição após as descobertas de Darwin? Como supor, por exemplo, que a forma do cavalo seja necessária, se na verdade nós sabemos que ela é fruto de um processo de evolução aleatório e que não segue nenhuma finalidade pré-determinada? Se o cavalo tem quatro pernas, não é porque está definido, desde a eternidade, que as coisas deveriam ser assim, mas simplesmente porque a luta pela sobrevivência ao longo dos milênios provou que ter quatro pernas pode ser uma boa e eficiente maneira de se locomover. Do mesmo modo, se ele tem duas orelhas e dois olhos, isso é porque a evolução provou que essa é uma boa maneira, para as espécies vivas, de apreender os estímulos do mundo.
                Será? Somos uma época muito deslumbrada pela ciência porque ela trouxe muitos resultados convenientes para nossa vida prática. Supomos que uma forma de conhecimento que foi capaz de ter um impacto tão profundo no mundo visível necessariamente deve ser verdadeira. Mas qualquer filósofo digno desse nome sabe muito bem que o método da ciência não pode, por uma questão epistemológica fundamental, ser usado para provar ou refutar argumentos filosóficos. E isso por uma razão muito simples: a filosofia se debruça sobre as questões de base do universo e do pensamento (ou seja, toma o mundo e a experiência humana consideradas em sua totalidade). A ciência, por seu lado, estuda o mundo em sua particularidade, ou seja, tenta decifrar as leis e princípios que se aplicam aos fenômenos efetivamente experimentados, quer dizer, aos fenômenos que já estão submetidos às categorias filosóficas problemáticas de tempo, espaço e causalidade.
                Na verdade, o problema das Ideias platônicas é muito mais profundo – e, enquanto suposição intelectual, não pode ser refutado nem pela linguística nem pela biologia. Trata-se de uma especulação primária sobre o porquê de o mundo real se apresentar aos nossos olhos dessa maneira e não de outra. A própria evolução das espécies, afinal, poderia ocorrer segundo o que é estabelecido por uma Ideia platônica.
                Essa não é uma intuição muito evidente porque, como criaturas cujas mentes estão situadas num ponto do espaço e num momento do tempo, temos dificuldade de abstrair o mundo de nossa experiência ao pensar o universo. Mas talvez ajude a esclarecer o problema tentar imaginar o processo evolutivo em sua totalidade, ou seja, não da perspectiva de uma criatura que também faz parte dele, mas sim como um todo, como a totalidade de suas manifestações ao longo do tempo em que o processo existiu ou existirá (algo que só seria acessível a uma mente que estivesse fora de nosso universo). Desde essa perspectiva, a aleatoriedade e cegueira da seleção natural tem uma significação bem diferente. Para começar, o próprio conceito de imprevisível supõe a noção de tempo – que não faz o menor sentido para o desenrolar do processo tomado enquanto totalidade. Os acidentes de percurso e as formas fortuitas que aparecem ao longo do processo tornam-se, quando abstraída a noção de tempo, necessários!  
                Se elas existissem, nada impediria que as Ideias platônicas se manifestassem no mundo ao longo do processo evolutivo darwiniano. Ou seja, se realmente existe uma forma de cavalo ela não é menos verdadeira – ou definitiva ou eterna – pelo fato de só se concretizar num determinado instante do processo evolutivo. Aquela forma possível – aquela Ideia – estava gravada na conformação do mundo desde a eternidade, para só se manifestar naquele instante.
                Não sei se Schopenhauer está certo ao retomar a noção platônica das Ideais e apresenta-la como um dos graus da objetidade da Vontade. No fim das contas, essa é, como toda discussão filosófica sobre os derradeiros fundamentos do real, um debate que tem que se contentar com as suposições, já que nosso conhecimento tem limitações insuperáveis. De todo modo, não deixa de ser notório perceber que as generalizações que nossas mentes fazem não se sustentam numa pluralidade infinita de experiências, mas se inspira numa regularidade que está no próprio mundo. Sim, há cavalos, há mesas e há cadeiras, e ainda que a paleontologia descubra cada vez mais frequentes indícios das formas intermediárias entre uma espécie animal e outra, a própria evolução apresenta seus momentos de estabilidade e os seus inexplicáveis saltos (que podem ser tanto uma mera ausência de evidências fósseis como a intrigante manifestação da substituição de uma ideia platônica por outra).
                Bem, eu mesmo já reconheci que evidências empíricas não bastam para provar uma ou outra tese filosófica. Mas preciso admitir que uma singela intuição me deixa, às vezes, inclinado a concordar com Platão e Schopenhauer.
                O corpo de uma mulher é o resultado de um longo processo evolutivo, em que a definitiva consideração biológica é saber quais genes sobrevivem e quais são extintos. Tudo o que deslumbra, portanto, na forma feminina são aparentemente vantagens comparativas: os homens são biologicamente condicionados a valorizar os atributos que institivamente sabem serem adequados para garantir a sobrevivência da prole – quer dizer, a beleza.
                Isso, pelo menos, é o que pensaria um cientista em seu laboratório, meditando assepticamente sobre tão brutal experiência estética. Um homem apaixonado – ou talvez apenas um libertino – que se deixa embriagar pela insinuação de um desejo dissimulado num olhar, pelos poros eriçados após uma carícia proibida, ou até pelo odor de cabelos suados – sente, muito intimamente, que tais olhos, tal pele e tais cabelos são a expressão necessária de uma beleza que, enquanto tipo, está além do mundo e que muito possivelmente se origina da mesma Vontade que faz tudo o que vive pulsar, ou da benevolente mente de um Criador – tão profícua e gloriosa a ponto de ser capaz de conceber, a partir do terrível Nada de que esse mundo nasceu – o cheiro que tem a pele de uma moça suada.
                Sim, talvez haja Ideias.
                 


    

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