Frederico Oliveira, 15/02/14
A música é a expressão de uma ordem. Não a ordem no sentido político ou jurídico da censura militar. Aliás, hoje também querem enquadrar a arte na ortodoxia politicamente correta. Longe disso – a música é a expressão de outra ordem invisível e sublime.
A música é a expressão de uma ordem. Não a ordem no sentido político ou jurídico da censura militar. Aliás, hoje também querem enquadrar a arte na ortodoxia politicamente correta. Longe disso – a música é a expressão de outra ordem invisível e sublime.
Para além do bom e do mau gosto, a
música exprime uma coesão natural. É a harmonia essa força que, de tão sutil,
quase nem é percebida pelos sentidos; deve ser captada pelas antenas da
inteligência sensível.
Faço uma experiência simples. Bato duas
teclas vizinhas do piano: a diferença de um semitom. Vou escutar que as duas
notas não casam, são dissonantes, repelem o ouvido. Isso isoladamente. Mas numa
composição musical as teclas inimigas podem formar um par perfeito, podem
formar um acorde de sétima maior ou ser arranjadas com a distância de uma
oitava ou outra forma. A diferença é o seu lugar no contexto. A diferença é a
ordem em que se inserem.
Metafisicamente a ordem é a própria
manifestação do ser. A ordem é uma presença total, pois tudo o que é... é ser.
Quero dizer que todo ser tem uma determinada forma. Até a bagunça de um quarto
tem alguma ordem: se passar um vendaval, desmancha a ordem anterior. Por isso a
desordem social é nada menos que a imposição de uma ordem violenta contra a
paz. Alguns pensam que uma ditadura instala a ordem - para mim instala a desordem.
A ordem é a manifestação do ser, eu dizia.
Mas como há graus de ser (mais ou menos durável), há também graus de ordem: o
quarto da vovó em comparação com o quarto da minha prima de 14 anos.
Enfim, parece que estou divagando mas é
disso que se trata quando se contrasta uma música com o som do escapamento de
um carro. A música é ordenada, o ruído muito menos ordenado. Assim o
ruído só pode ser entendido como "música" num sentido muito
vago do termo (no mesmo sentido em que um quarto revirado tem lá sua
ordem).
Algumas pessoas se alimentam de ruído como se estivessem ouvindo música:
Veja bem, garanto que não é questão de
bom ou mau gosto. Tampouco se trata de nenhum tradicionalismo de minha
parte. A música é uma expressão do Belo, portanto não conheço regras para
limitar as expressões de beleza de que a criatividade humana é capaz. Saber o
que é belo hoje não me dá o direito de definir como será uma obra de arte bela
amanhã. Há infinitas formas de beleza. Quando afirmo que o trance não é música
estou apelando a uma noção muito mais fundamental.
Como exemplo, eu poderia contrastar a
discoteca acima com a Ária em G de Bach. Mas quero evitar de todas as formas
que se confunda o problema da ordem com alguma espécie de preconceito esnobe.
Por isso, escolhi outro exemplo de um contexto cultural completamente estranho
a mim, uma música que me foi apresentada por meu amigo Eduardo Siebra, insigne orientalista.
Um sujeito que não perceba a diferença entre aquele ruído
enlouquecedor e esta bela música japonesa é ruim da cabeça. Mas isso - por estranho que pareça - talvez não devesse nos espantar. Vivemos numa sociedade
que perdeu a sensibilidade para questões mais sérias, o que se poderia esperar
da arte? Há pessoas que não reconhecem que um bebê no ventre da mãe é um ser
humano, ao mesmo tempo em que consideram crime comer sashimi de baleia. É o de
menos que não saibam diferenciar uma obra-de-arte de um cocô pendurado no
museu. Viver num mundo assim é a mais completa desordem. Ou talvez seja uma
ordem macabra.
Será que ouvir boa música dá ordem à alma?
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