Eduardo Siebra, 16/04/14
Um dos benefícios da leitura de "O Mundo como
Vontade e Representação" é a luz que a obra lança sobre alguns dos pontos
mais difíceis da filosofia de Nietzsche. Não que Nietzsche seja apenas um
schopenhaueriano – sua obra é multifacetada e muito mais complexa do que isso –
porém ele leu Schopenhauer em sua juventude, e embora suas criações não sejam
um desdobramento direto da filosofia de seu antecessor, é razoável dizer que
Schopenhauer forneceu a Nietzsche o vocabulário sem o qual ele não poderia ter começado
a desenvolver seu pensamento.
Eu diria que é como se a influência
de Schopenhauer estivesse presente num nível inconsciente – nem tanto pelo fato
de Nietzsche compartilhar as preocupações ou conclusões desse seu antigo
mestre, mas sim porque as discussões nietzscheanas partem do panorama intelectual
que Schopenhauer delineou – do mesmo modo que as reflexões de Schopenhauer só
foram possível em cima do terreno meticulosamente arado por Kant.
Um dos mais intrigantes aspectos
dessa conexão não-declarada entre os dois pensamentos é o conceito de "transvaloração
de todos os valores" – supostamente o caminho que poderia levar um homem
comum a transformar-se no übermensch prenunciado por Zaratustra. Não nos
iludamos pela diferença de tom: o que Nietzsche apresenta de forma tão poética
é, num certo sentido, uma ideia já explorada por Schopenhauer ao dissertar
sobre a beatitude.
Quando o sábio simbolicamente sobe à
montanha, ele substitui sua perspectiva rasteira de indivíduo pelo que poderia
ser descrito como a visão panorâmica: ele passa a ver o horizonte, o
abrangente, e aspectos da vida que antes lhe eram indecifráveis (e muitas vezes
terríveis) tornam-se, desta elevada perspectiva, não apenas compreensíveis, mas
aceitáveis. O sábio, então, transcende a moral, já que o conceito limitador de
bem e de mal, embora possa ser significativo para o homem médio que labuta na
planície, perde o sentido quando o espetáculo da vida se descortina do alto.
Por isso o übermensch pode ser tão terrível: ao decifrar seu próprio destino
meditando sobre o abismo, ele se liberta da responsabilidade e da culpa, já que
ele é, mais do que homem, uma expressão pura da Vontade de Potência que é a
essência mesma do mundo. Nós, humanos, não podemos julgá-lo, pois julgá-lo
seria querer julgar o mundo e a vida.
Essa é apenas uma maneira imageticamente
mais rica de tratar da superação daquilo que Schopenhauer chama de
"princípio da individuação". Segundo sua filosofia, não apenas todo
homem, mas tudo o que existe é a expressão de uma única e mesma Vontade. Somos
aspectos particulares de um todo que se objetifica no mundo. Percebemos o mundo
pelos filtros do tempo e do espaço, e estamos aprisionados, pelo querer, ao
nosso ego. Porém, segundo Schopenhauer, em circunstâncias muito raras, pessoas excepcionais
são capazes de alcançar, pelo conhecimento, a compreensão do erro de
perspectiva que nossa vida individual representa. É a experiência de iluminação
descrita pelos budistas e o estado de indiferenciação descrito nos Upanixades: o
santo compreende que ele é uma expressão do Todo, e que no Todo, tudo se
equaliza.
Não acho temerário dizer que o
übermensch nietzschiano é uma atualização poética do santo descrito por Schopenhauer.
Os dois arquétipos expressam a mesma iluminação – a compreensão da vida no
contexto da totalidade. A única e essencial diferença reside na missão criadora
que Nietzsche atribui ao herói por ele profetizado: enquanto Schopenhauer supõe
que o seu santo necessariamente se ausentaria da vida – ainda quando,
exteriormente, continua a praticar boas ações aos seus semelhantes – o
übermensch é uma força criadora e fundadora. Ele é o pai do futuro, um
super-herói moral que está capacitado e credenciado não apenas a destruir a
humanidade antiga, mas também a semear a humanidade futura.
Essa diferença se explica por uma
divergência psicológica fundamental entre Schopenhauer e Nietzsche: enquanto
para o primeiro a Vontade é a causa de toda vida mas, também, de todo o
sofrimento humano (ou seja, é a fonte de todas as nossas misérias), a Vontade
de Potência nietzschiana é a fonte de onde jorra toda a beleza, toda a poesia
do mundo. O universo, para Nietzsche, não é uma terrível máquina de atormentar
a consciência: é, pelo contrário, o palco no qual a consciência, mesmo quando
atormentada, pode exultar, seja pela música, seja pela conquista, seja pela
expressão inconsequente da força ou da generosidade. Schopenhauer nos diz: o
mundo é ruim; e ao decifrá-lo, o santo o supera. Nietzsche diz: o mundo é bom,
e ao decifrá-lo, o übermensch o conquista.
Eu diria que os dois pensadores
estão certos, e que eles estão dissertando sobre a mesma verdade a partir de
perspectivas diferentes. O erro de Schopenhauer talvez seja apenas o de supor
que a iluminação equivalha à anulação do sujeito e do mundo: o Buda não
desapareceu ao alcançar o Nirvana, e mesmo diante da derradeira compreensão,
ele continuou imerso na imanência, na mundidade, e julgou que valeria a pena transmitir
seus ensinamentos a seus antigos iguais, para aliviar-lhes as dores. Ou seja, a
suprema compreensão se dá no Ser, dentro do mundo e no contexto de seus dramas.
O erro de Nietzsche talvez tenha
sido o de supor que seu übermensch, depois de ultrapassar o derradeiro limiar
do bem e do mal, ainda estaria preocupado em impor sua vontade de potência
individual. O homem que alcança a compreensão suprema poderia até infligir, com
a consciência tranquila, terríveis sofrimentos aos demais, porém ele carece de
motivação para tanto. Ele não é mais a expressão de sua vontade particular, mas
ele é a expressão mesma da vida tomada em sua inteireza. Suas glórias são as
glórias da vida e do mundo, e a vida e o mundo estão pouco preocupados em
afirmar uma ou outra vontade específica. Ou seja, ao invés de um terrível
conquistador, ou de um herói teutônico disposto a incendiar a Europa inteira, o
übermensch, caso existisse, provavelmente seria um homem de profunda serenidade
e nenhuma ansiedade – alguém que poderia assistir aos maiores horrores com
absoluta indiferença, mas que não teria razão para fazer mal a um inseto. Ou
seja, ele fundaria o novo mundo com a resignação de quem cumpre um inevitável
destino, não com a impaciência dos que fundam um império.
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