segunda-feira, 26 de maio de 2014

Escola do Sonho: apresentação da obra poética de José Chagas

Escola do Sonho: apresentação da obra poética de José Chagas



Por Frederico Oliveira
Introdução

            Certa vez Manuel Bandeira escreveu que a obra de Gustavo Corção deveria ser traduzida para vários idiomas de modo a fazer conhecer ao mundo que o Brasil merece um Prêmio Nobel. Alguns gênios permanecem desconhecidos do grande público, separados pela barreira do idioma materno ou pelas circunstâncias de um ambiente cultural mesquinho e outras condições alheias à vontade. Mas há os gênios que permanecem isolados por uma questão de temperamento ou por pura opção de vida. No caso de José Chagas, eu diria que se trata de uma conjunção de todos esses fatores.
            Imagino o poeta Manuel Bandeira às voltas com um colega inglês, esforçando-se para traduzi-lo a contento e a explicar por que a literatura de Corção é tão digna de ocupar as melhores antologias do Ocidente. A minha angústia é um pouco diferente. Também descobri um tesouro escondido, mas não tenho a pretensão de divulgar o nome de José Chagas no exterior. Contento-me se este ensaio vencer a desconfiança do leitor brasileiro e motivá-lo a conhecer algumas das melhores páginas poéticas da língua portuguesa.
            Como o autor de Estrela da Vida Inteira, sinto a angústia de não fazer-me acreditar e, ao mesmo tempo, a necessidade de compartilhar uma riqueza que não cabe em si mesma. Aceitei o convite para escrever este ensaio por pura caridade. Caridade não com Chagas, é óbvio, mas com o leitor que o não conhece.
            Em seus mais de 56 anos de atividade a contar da publicação de Canção da Expectativa (1955), a obra de José Chagas representa para mim o cume de uma longa tradição literária maranhense, de Gonçalves Dias a Ferreira Gullar, passando por Sousândrade, os irmãos Aluísio e Artur Azevedo, Coelho Neto, Graça Aranha e Nauro Machado, para citar apenas os nomes que tiveram repercussão fora do Estado.
Em Chagas a sabedoria e a agudez da intuição alcançam enfim a expressão simples e nítida que é a marca do homem contemplativo dotado de um incomum domínio da linguagem. E não pode ser chamado de provinciano um homem com tão vasto horizonte de problemas filosóficos.
Pois José Chagas não é poeta de um assunto só. Ele não padece da monotonia que pode acometer até os maiores representantes do cânone ocidental. Ao ler, por exemplo, a obra completa de Fernando Pessoa, sente-se, a certa altura, uma estafa retórica, um eco nos ouvidos, um quase adivinhar o verso seguinte. Porque Fernando Pessoa, apesar dos heterônimos e da polivalência intencional, é um tanto circular em seus pensamentos: a meio caminho do Guardador de Rebanhos ou da poesia reunida de Álvaro de Campos, o leitor já antecipa a compreensão do conjunto, sente-se saciado daquele estado de espírito do autor e até sofre a tentação de suspender a leitura. Essa condição também se aplica, creio, a Jorge Luis Borges, de personalidade obsessiva, ainda que seja uma obsessão do sublime – obsessão do infinito como perplexidade em face do Universo. Nada disso elide o valor e a genialidade de Pessoa e Borges, é claro. Mas receio que o mesmo se possa dizer de Kafka – outro gênio plagiador de si mesmo. Sob esse aspecto, aventurar-se à obra completa de um escritor – mesmo dos maiores – pode tornar-se uma experiência frustrante. Em algum ponto, o encanto se quebra, o segredo se revela...
Mas, para nossa surpresa, José Chagas não padece desse vício de si. O leitor se defrontará com uma poesia realmente rica em formas e temas. Nela cabem as divagações metafísicas de Os Telhados, o discurso mítico-telúrico de Os Canhões do Silêncio, a sátira política em cordel de O caso da Ponte de São Francisco, as questões existenciais de Antropoema ou o signo da humana dor, as reflexões sobre o ofício da poesia em A Arcada do Tempo, o amor erótico de Maré Moça e muito mais. Além disso, o leitor que julgar a obra de Chagas tomando como referência, por exemplo, Apanhados do Chão e Maré memória, concluirá que tem nas mãos um escritor essencialmente urbano; mas ao descobrir livros como Colégio do Vento ou De Lavra e de Palavra, verá que Chagas reserva consigo a sabedoria de um camponês. É que, como Virgílio, ele legou à poesia nacional a sua Eneida e a sua Bucólicas, embora não tenha recebido a equivalente glória acadêmica.

A Escola do Sonho I

            Neste ensaio, como o próprio título sugere, abordarei a questão do sonho e seu significado na obra de José Chagas.
Que é o sonho? É a dimensão imaterial da vida, a transcendência, a Beleza. É a poesia no que ela tem de “sal da terra”, pois dá sabor à existência e a conserva. Chagas alude mesmo a passagens dos Evangelhos para demarcar essa missão da poesia, como no SONETO 13 de Colégio do Vento: “É natural/ nem só de pão a boca ser vazia”; ou n’A Arcada do Tempo:
 “pois só ela encerra
o aviso cristão:
- passa o céu e a terra,
a palavra não.

A palavra fica
persistindo no ar,
como a eterna dica,
que Deus nos quer dar”.

            O trecho acima esboça um respeito quase sagrado pela palavra. Enquanto a sacralidade bíblica afirma no Verbo Divino o poder de libertar o homem do pecado, José Chagas vê a poesia como um ofício que liberta o ser humano da mesquinhez da vida.
Aquele soneto merece ser citado na íntegra por ser a chave deste ensaio e a síntese da filosofia estética de José Chagas.
            SONETO 13
Muito cedo plantei o arroz real,
            e o arroz do sonho era o que mais crescia;
            também ao capinar o milharal,
            mais me ocupava em minha fantasia,
            pois da lavra não vinha por igual
            o que eu da terra e da ilusão colhia,
            e a esperança do verde era um sinal
            a murchar, no verão, como a alegria;
            só o plantio da alma é que era tal
            que quanto menos chuva mais floria,
            e isso era bom, porquanto é natural
            nem só de pão a boca ser vazia,
            e se pouco era o pão e pouco o sal,
            muito era o doce bom da poesia.

            Impressiona a eloquência contida na inteireza desses sonetos compostos, em sua quase totalidade, de um só período sintático. Além de ter desenvolvido com maestria e originalidade a técnica sonetística do emprego de duas rimas apenas, Chagas alcança uma fluência admirável, onde cada verso encerra uma idéia completa, sem atropelos melódicos. É verdade que em outras peças ele usará de enjambements, como parte de seu variado acervo de recursos técnicos. Mas tudo sem artificialismos parnasianos. José Chagas é um sonetista tipicamente moderno, ao lado de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima.
Ainda na tentativa de conceituar o sonho no universo do escritor, o SONETO XXV do livro Campoemas nos informa que “de lavra e de palavra a vida é feita”. A poesia implica, portanto, um trabalho. A palavra depende da lavra. O sonho aí não é estado de dormência! É uma atividade voluntária, diária e consciente. É a luta vã de que fala Drummond e que, segundo Nauro Machado, consome toda uma existência. A Arcada do Tempo é a obra que José Chagas dedicou particularmente a esse tema:
“O poema se induz
E o poeta transpira,
Carregando a cruz,
Mas tangendo a lira.

Que o poema tem isto
de particular:
mesmo após ser visto,
custa a se mostrar.

É como um segredo
Que, após já ser dito,
Ainda é muito cedo
Para dar-se em grito.

E o poeta não vence o
Poema, que o lavra,
Primeiro, em silêncio.
Depois, em palavra.”
           
            (...)
E o poeta acredita
Que o sonho é no chão;
Que a paz é restrita
Aos que a cantarão;

Que o barro primeiro
Molda todos nós,
E o sopro do oleiro
É a única voz.
(...)

Que o poema é que encerra
O canto maior
De quem lavra a terra
E a inunda em suor

Quem cuida a lavoura,
Cuida a poesia
Que também se doura
Ao sol que a recria.

O poema debulha
Seu campo de trigo
Na tarde em fagulha
De um poente antigo.

            Esse cultivo da poesia produz o sonho, uma colheita que não dá lucro, mas que dá sentido à vida. Além de saciar a fome de sentido, torna a vida autêntica. Viver com autenticidade é um mandamento ético da poesia, como ensina Rilke.
O poema situa
o poeta na vida
a mover-se em lua
de maré sofrida
            (...)

O poeta é um varão
            tão assinalado
            que os sonhos só vão
            morrer do seu lado.
           
            A fusão entre autor e obra é que singulariza o artista. Um pedaço de mármore isoladamente considerado é uma unidade, mas a Pietà de Michelangelo é – mais que unidade – singularidade, porque comove e, por força de sua graça e beleza, se distingue dos granitos informes.
Além do virtuosismo de José Chagas que, em A Arcada do Tempo, experimenta as trovas de cinco sílabas com a igual naturalidade dos decassílabos anteriores, ele prova acima de tudo um extraordinário poder de síntese. Pois a boa poesia é compacta. O talento do poeta condensa, com ganho de expressividade, a frase que, dita de outro modo, demandaria extensas linhas. Tomemos um exemplo da música popular: “quando o verde dos teus olhos/se espaiar na prantação”. Uma vez desembrulhada em prosa, a mesma idéia exige uma série de associações que remetem desde o evento climático e às consequências sobre a flora, à simbologia da esperança, até o saudosismo do cantor que identifica os olhos da amada com a paisagem próspera – tudo isso resumido no espaço de um dístico.
Por isso, só um grande poeta comprime, na estreiteza das quadrinhas de A Arcada do Tempo, temas tão complexos como a sociedade de massas, a queda do nível cultural das elites, a decadência intelectual do Maranhão, o abandono público do patrimônio arquitetônico, a inépcia da crítica literária feita nas universidades e muito mais.

A Escola do Sonho II
Esclarecido o sentido do sonho para José Chagas, convém agora justificar a outra parte do título deste ensaio.
Escola do Sonho sugere uma pedagogia subjacente à poesia. O autor é mais humilde e elege a expressão Colégio do Vento. Colégio é menor que Escola, pois esta implica seguidores, um corpo de idéias, talvez um fundador. E o poeta coloca-se na condição de aprendiz – aprendiz de suas memórias, do menino que observa o velho pai, da criança em primeiras letras, das lições de fidelidade dadas pelo cão do sítio, das noções de velhice transmitidas pelo engenho abandonado.
Vou reproduzir outro soneto cujas imagens transmitem a riqueza desse universo:
SONETO 23
O riacho secava e em sua areia
eu escrevia as letras do alfabeto,
como aluno do campo que semeia
sonhos em seu canteiro predileto,
e ilusões vinham todas em cadeia
para a escola do vento, que, inquieto,
sempre apagava a minha escrita feia,
pra que eu a refizesse com o afeto
de quem retoma o sonho e o delineia
até vê-lo na mão fluir correto,
como o riacho que hoje em minha veia
passa, a escrever-me a vida por completo,
e um vento de saudade quer que eu leia
mas vê que sou ainda analfabeto.

Talvez a primeira lição que o mestre da Escola do Sonho tenha-me transmitido seja a simplicidade.
Apesar da sofisticação técnica e temática, sua poesia é desconcertantemente simples. Acima de tudo, sua escrita é límpida como água da fonte. É musical sem esforço. Seus versos fluem como quem fala, embora ninguém fale espontaneamente com tanta leveza. Em José Chagas, não há preciosismo vocabular: ele escolhe as palavras do cotidiano que todos usam (areia, alfabeto, cadeia, afeto etc.), mas ninguém as usa desse modo.
Também aprecio autores barrocos, mas vejo na simplicidade uma virtude incomparável. Os versos mais perenes da literatura universal são perfeitamente simples: “No princípio, era o Verbo”; “Ser ou não ser”; “No meio do caminho de nossa vida”. São também os mais profundos em termos metafísicos e existenciais! Isso pode parecer um paradoxo, mas não é. O mau literato é raso como uma poça de lama, que não deixa entrever o fundo: seu palavrório escuso recobre a superficialidade do pensamento. Mas o bom escritor é como uma piscina límpida – surpreende o nadador afoito que, de longe, não adivinha sua profundidade. E a obra de José Chagas é nítida e profunda como uma piscina olímpica.
A princípio, ilude o leitor ocasional que o não encontrará nas prateleiras das bookstores[1], senão em sebos e em edições modestíssimas, pouco atrativas ao olhar do curioso. No entanto, quem tiver a sorte de apreciar, por exemplo, os 40 sonetos de Colégio do Vento verá que esse ilustre desconhecido guarda consigo um tesouro.
A segunda lição da Escola do Sonho é a superação da dicotomia regionalismo-universalidade.
O crítico Wilson Martins definiu-o como poeta provincial, mas não provinciano. É uma definição extremamente interessante. Mostra que J. Chagas sabe valorizar sua terra adotiva da melhor maneira, não com orgulho bairrista do que há nela de específico, mas explorando o elemento peculiar de modo a elevar-se a partir dele. O provinciano fecha-se em seu mundo restrito; enquanto o provincial, assumindo sua identidade e permanecendo fiel a ela, abre-se ao diálogo com outras culturas. São provinciais, mas não provincianos, os dramas dos mujiques de Dostoievski, pois nada impede que eu os compreenda e neles até me reconheça. Sendo universal, Dostoievski não abandona suas raízes nacionais e permanece profundamente russo. Daí que ser escritor brasileiro ou ludovicense é algo mais do que simplesmente incluir as palmeiras e o sabiá no poema.
As questões de que o poeta trata não se limitam ao ambiente cultural maranhense ou paraibano (José Chagas é, na verdade, nascido em Piancó/PB). Considerado em sua essência, o drama da seca é o mesmo para o vaqueiro nordestino e para o pastor marroquino, da mesma maneira que a angústia da passagem do tempo é uma só para a humanidade inteira.
Por outro lado, ninguém o acusará de alienar-se da realidade local. Até por opção de vida, dono de uma personalidade tímida segundo amigos próximos, Chagas permanece isolado do circuito literário nacional, por mais que sua obra tenha empolgado críticos como Wilson Martins e o poeta Carlos Drummond de Andrade. O mistério desse insulamento na ilha que o acolheu talvez possa ser realmente explicado por uma preferência à vida contemplativa, alheia ao bulício.

A Escola do Sonho III
Essa última hipótese é corroborada por sua ética poética. À maneira de Rainer Maria Rilke, cujas Cartas a um jovem poeta ensinam a prática da solidão como condição indispensável para a criação, José Chagas deixa transparecer no decorrer de sua obra a mesma filosofia estética.
Permito-me esboçar uma chave de interpretação cujos elementos aparecem associados ao longo da obra de Chagas, que eu esquematizaria da seguinte forma:

Certamente parecerá canhestra tal figura como resultado de um esforço crítico-literário, uma vez que, por definição, ninguém pode reduzir uma vida inteira a um esquema. Feita essa ressalva, tentemos explicar a idéia que ela encerra.
Na poética de José Chagas, a solidão não é um abandono, mas uma decisão do espírito necessária ao autoconhecimento. O silêncio é a pré-condição da vida contemplativa e criativa. O sonho representa a atividade poética, o engenho e a arte. A paz é a recompensa de quem vive essa realidade.
Eis então uma terceira lição da Escola do Sonho: se queres ser poeta, pratica a solidão, o silêncio e o sonho.
Diz n’A Arcada do Tempo:
Reina a ingênua crença
de que, estando triste,
se, em verso, alguém pensa,
logo, um poeta existe

forjado na hora
pelo esforço vão
com que ele se arvora
num ser de emoção.

E assim se imagina
que o poeta bisonho
vem de clandestina
fábrica de sonho,

ou que ele se faz
de fora pra dentro,
de diante pra trás,
num giro sem centro (...)

Vejamos adiante como o autor entende o ofício da poesia segundo a chave de interpretação acima proposta.
O poema se apossa
da palavra e faz
da incerteza nossa
seu ninho de paz.

Só ele é que assume
sua natureza,
erguendo-se ao cume
da montanha acesa

com que o verbo aclara
um outro horizonte,
para a manhã rara
que de nós desponte.

E o poema aceita
que a palavra o faça,
mas se opõe à espreita
como de uma caça

que em silêncio caia
na sua armadilha,
ou chegue a uma praia
que ninguém palmilha,

pois ele acredita
que a palavra cresce
sozinha e contrita
como numa prece (...)

Ainda uma palavra sobre os aspectos formais da obra de Chagas. Em A Arcada do Tempo, as quadras de cinco sílabas são a técnica de expressão eleita do começo ao fim do livro. O fluxo da argumentação e a coerência da forma vazada em um só fôlego permitem considerá-lo um poema único, cujos capítulos são como estrofes maiores. Essa unidade também ocorre em Colégio do Vento, De lavra e de palavra..., Antropoema ou o signo da humana dor, Os Azulejos do Tempo, inteiramente compostos de sonetos-estrofes.
Pode-se extrair daí uma quarta lição da Escola do Sonho: deve o poeta exercitar todos os metros, inclusive o livre, de modo a fazer-se fluente em vários modos de expressão poética? Assumindo o risco de forçar inferências, parece-me ser justamente essa a prática do mestre. Chagas desenvolve com igual êxito os versos de quatro, cinco, sete e dez sílabas, além de ser invejavelmente fluente nos versos livres e brancos. Seu domínio da língua portuguesa compara-se ao do pianista que, por fazer da música o seu ofício, impôs-se executar com a mesma perfeição os saltos da valsa, as cadências dos noturnos, os requebros do choro e os ostinati das fugas de Bach.


O signo da dor humana

José Chagas é, acima de tudo, um metafísico. Interroga sobre a natureza do bem e do mal. Questiona se o mal existe por si, se faz parte da criação divina ou se é uma criação humana que Deus, respeitando a liberdade do homem, permite, para que o homem viva o drama ético.
É uma discussão cujo status quaestionis remonta a Santo Agostinho. Um dos argumentos do ateísmo consiste precisamente em identificar as misérias do mundo e indagar: se Deus existe e é bom como dizem, essas maldades não deveriam acontecer; posto que acontecem, ou Deus é mau e aprisiona o ser humano num mundo de sofrimento ou Ele, de fato, não existe. Pois que fizeram aqueles inocentes para merecer de Deus tanta catástrofe? José Chagas enfrenta essa questão no já citado livro De lavra e de Palavra ou Campoemas:

SONETO XVII
Deus não tem nada com o que ali se passa,
pois tudo deu, até demais talvez,
e deu água, deu som, deu luz de graça,
deu o tempo total de cada mês
e deu o chão para que a planta nasça
e nunca em tempo algum haja escassez,
deu a destreza com que o homem laça
pela manhã, no campo, a sua rês,
deu a esperança que o destino traça
de a cada um ser dada a sua vez,
mas o homem produz sua desgraça
e, arrogante na sua pequenez,
explora a sua natureza escassa
até criar o mal que Deus não fez.

Para o poeta, as riquezas naturais não são um acidente da matéria ou acaso feliz à vida do homem. A terra, o sol, a chuva, a habilidade e a inteligência humanas são um presente do Criador – a que, aliás, o ser humano não tem direito de reivindicação: “pois tudo é doação, nada é herança” (idem, SONETO XLII). E a solução não seria odiar a Deus se algo dá errado, mas reconhecer aquelas potencialidades como um dom gratuito e, por causa delas, doar-se à caridade.

XLII
Se uma flor desabrocha, uma esperança
cresce no coração da natureza,
e tudo em torno dela vibra e dança
numa febril coloração acesa,
e a brisa da manhã sopra mais mansa
como pondo carícia na beleza
para a flor nos dizer que a vida avança
e que a terra não pode ficar presa,
pois tudo é doação, nada é herança,
e há de crescer no campo uma certeza
que a mão que agora o fruto não alcança
vai um dia afinal se abrir, surpresa,
para a colheita pura, na bonança
que a todos servirá, numa só mesa.

LXV
O sopro que animou o barro, quente
ainda das próprias mãos do Criador,
é o mesmo que, no campo, a terra sente,
dando energia a tudo quanto for
matéria posta em sonho de semente,
que a semente, no chão, sonha com flor,
e a flor é a realidade transcendente
do mistério da luz que vem expor
o dia e revelar magicamente
como o estrume se faz aroma e cor,
e é a própria terra sugerindo à gente
com seu alto poder transformador
que o barro que nos fez também se esquente
ao sol das almas e floresça amor.

Mas esse mistério é talvez grande demais para caber no intelecto humano. O poeta sabe que essas afirmações são “muito duras”, difíceis de compreender e de aceitar. Aqui, poderíamos lembrar o anjo que Santo Agostinho encontrou na praia transportando a água do mar para um buraco na areia. É mais fácil para Agostinho comprimir o oceano do que entender o Mistério. A fé jamais apaga o enigma, pois o homem permanece de olhos extasiados diante do sublime:

LXIV
Matéria de silêncio essa que, exposta
na largura do chão, nada nos diz
porque nada dizer é que é a resposta
de tudo o que no chão se faz raiz,
e a terra move a paz de que ela gosta
para expressar-se em florações sutis
no silêncio subindo pela encosta
das montanhas que do alto o sol bendiz,
vendo que a própria natureza aposta
como a luz sobre o campo é mais feliz
e como até o boi com sua bosta
levanta sugestões primaveris,
enquanto o homem só deixa ali, proposta,
uma equação perdida de seu xis.

A epopéia-lírica de São Luís
O leitor culto ao ser interpelado sobre quem representa o cânone da poesia maranhense pensará imediatamente em Gonçalves Dias. Mas eu creio que José Chagas apresenta qualidades superiores às do cantor de Os Timbiras.
Na poética romântica de Gonçalves Dias, a palmeira tem apenas o valor de palmeira, as várzeas são apenas várzeas, e as flores apenas flores. N’Os Canhões do Silêncio – grande epopéia mítico-telúrica – os mirantes são mais do que mirantes, e os cupins e ratos roem o tempo. Da janela do mirante, o poeta observa a cidade e contempla o tempo mítico – de feitos perdidos no passado; o tempo histórico – dos registros, das datas, do patrimônio colonial; o tempo laboral – dos transeuntes ocupados com o imediatismo da vida urbana; finalmente, o tempo poético – que assiste a todas essas sobreposições e interposições de camadas temporais.
O mirante, velho conhecido na paisagem arquitetônica de São Luís, torna-se uma espécie de zigurate que o transporta para as mais inquietantes indagações existenciais.
Em “Minha terra tem palmeiras/onde canta o Sabiá”, o pássaro pode, de fato, ser interpretado como o poeta longe da pátria. José Chagas rende o seu tributo a Gonçalves Dias e, seguindo o caminho de muitos, parafraseia a sua própria Canção do Exílio. Acontece que Chagas acaba superando a versão original. Em lugar do sabiá, o autor de Os canhões do silêncio recolhe um bem-te-vi de sua janela especulativa. Enquanto o sabiá gonçalvino gorjeia, o bem-te-vi, além de cantar, medita:

São Luís tem cumeeiras
Onde canta o bem-te-vi,
E aves outras, estrangeiras,
Não cantam como as daqui.

Em cismar sozinho eu sinto
Quase a certeza de que
Um velho amor nunca extinto
No bem-te-vi bem se vê.

Não permita Deus que eu morra
Sem que volte sempre aqui
Liberto e com a alma forra
Como a desse bem-te-vi.

O pássaro de Chagas não só canta e medita como tem alma... e uma alma livre. É ele quem lembra ao poeta o segredo do sonho apanhado em silêncio como grão da paz. E, sem essa paz, a manhã não tem as mesmas cores.

Sei todo dia, bem cedo
O que ele bem viu e diz
Como quem conta um segredo
Antigo de São Luís.

Sua cantiga se faz
Tão necessária à manhã,
Que sem ela aqui a paz
Seria uma coisa vã.

Canta, bem-te-vi, agora,
Que amanhã talvez não cantes,
E só tua alma sonora
Voará nesses mirantes.

Canta enquanto o canto encanta
Teu sonho de aurora pura,
E o sol te aquece a garganta
Nessa manhã de ventura.

Canta esse canto que é bom
Na alvorada merecida.
Quem tira da vida um som
Põe tudo o que é bom na vida.

Canta, bem-te-vi do mundo,
Para que o céu bem te veja,
E o teu som seja profundo
Como o de um sino de igreja.

Canta, canta, ó ave irmã,
Que eu bem te vejo e te ouço:
Teu canto inventa a manhã
E faz o mundo mais moço.

Canta, bem-te-vi amigo,
Canta o passado e o futuro,
Que aqui me embalo contigo
Num canto anônimo e puro.

E canto neste mirante
Embora só por cantar,
Pois sei que meu canto errante
Se esvai como o teu, no ar.

Nas últimas estrofes, resta claro que o relativo anonimato de José Chagas, seu isolamento do circuito literário nacional, parece ser consciente e até deliberado. Ele não aspira ao isolamento por orgulho, nem o lamenta de alma ferida. Simplesmente aceita essa condição como um fato necessário ou inevitável: “Resta, porém, a certeza/de que o canto era preciso,/e cada manhã acesa/contava com o nosso aviso”.
Chegando à metade deste ensaio, fica claro para mim que a consciência de um canto “anônimo e puro” liberta o poeta da aspiração da glória, da vaidade, do laurel imarcescível que eu – frívolo incorrigível – lhe atribuo. O poeta escreve simplesmente como a natureza produz seus sons, porque “o canto era preciso” e esta é uma exigência das manhãs. Um amigo me disse que o verso é como o barulho de um regato: rebenta mesmo se ninguém se dispõe a escutá-lo.
Isso pode exalar um aroma de melancolia, mas José Chagas parece sentir-se bem na companhia “apenas” do seu bem-te-vi imaginário. A discussão sobre essa “solidão exterior” remete-nos a outra, já abordada anteriormente, a que chamamos “solidão interior”. É uma solidão que pode ocorrer mesmo na presença de convivas. Solidão de dentro. Da alma. “Quem é de mirante/é de solidão/solidão constante/seja só ou não”.
Recordo que Heitor Villa-Lobos, quando indagado se não lhe incomodava o apito do trem que passava à porta de sua casa, deu a intrigante resposta de que o ouvido de dentro não se confunde com o ouvido de fora! O artista vive essa tensão entre o necessário recolhimento e a inevitável exposição à vida. Entre ser poeta e ser cidadão, amigo, irmão, pai de família. José Chagas elabora melhor essa condição na metáfora do gato:

Também o gato é leve
caminhando num fim de tarde

o peso de sua sombra
se incorpora aos muros
e o gato não é senão
a presença em pelo dessa sombra
em forma de gato
desenhada no ar

O gato chega a esse fim de tarde
ao longo de um caminhar
de mais de trezentos anos
e os telhados o reconhecem
como a testemunha mansa
de todas as forças do tempo
que agora se ocupa inteiro
na preparação da noite
(...)

Longo sobre o muro
dá à tarde rasa
seu silêncio puro
de animal de casa,
de bicho macio
que afeito a carinho
goza o desafio
de se ver sozinho.

Àqueles que não leram ainda Os canhões do silêncio cabe aqui uma nota. Trata-se de um só poema cujo fluxo ignora a forma livre ou metrificada, transitando de uma para outra sem solução de continuidade ou perda do ritmo narrativo. O autor exercita pelo menos 5 metros distintos (o de três, quatro, cinco, sete e dez pés), além da forma livre. O ritmo do livro constitui-se precisamente das variações na extensão dos versos. Antes que o ouvido humano se canse da pulsação métrica, o poeta conduz as águas do poema-rio para um novo leito, mais estreito ou mais extenso, numa alternância de embalos. Ora as idéias fluem ligeiras nas calhas apertadas de redondilhas menores, ora espreguiçam-se no langor discursivo de frases mais longas.
Poder-se-ia escrever um ensaio à parte exclusivamente dedicado à análise dos bichos que aparecem na poesia de José Chagas, sobretudo em Os canhões do silêncio. O gato; os pombos; a barata, os ratos e o cupim; o cavalo da morte; a andorinha; o urubu – todos dotados de profundo significado. Também os objetos inanimados como o mirante, a janela, os telhados tornam-se vivos e conversam conosco, testemunhando o rastro do tempo.
N’Os canhões do silêncio, o mar não é simples componente da paisagem, agradável à vista. O mar é símbolo do infinito, da eternidade. Mesmo quando o poeta se recusa a sondar o mistério, é este quem o procura: “Que mar é esse/que me rodeia/com interesse/de maré cheia?”. Uma sucessão de indagações desemboca afinal num belíssimo soneto dedicado a Gonçalves Dias, cujo mergulho no mar foi um mergulho na eternidade. Naufragado na Baía de São Marcos, sua morte o imortalizou. O poeta lendário veio morrer em sua terra, embora não em terra firme, e, sem ter sido atendido, teve atendida a sua prece – “Não permita Deus que eu morra/sem que eu volte para lá”. Entrou no mar infinito... e assim tornou-se mais presente e palpável do que no cemitério.
Devo ainda uma explicação sobre o motivo por que classifiquei Os canhões do silêncio como epopéia-lírica. Que essa obra tem de épico? Certamente, distingue-se da epopéia no sentido clássico, ao estilo de Tasso ou de Camões, pois não versa sobre feitos guerreiros ou heroicos. É épico na medida em que narra a condição solitária do poeta assistindo à degradação do ser e à deterioração da cidade. É um heroísmo de comparecer sozinho ao chamado do mirante...
Na epopéia-lírica de Os canhões do silêncio desaparecem as idéias de um povo destinado a grandezas e de um autor que se imortalizou por cantá-las. O verdadeiro poeta almeja a paz, e esta é de certo modo incompatível com a fama. Daí que só possa ser considerado épico naquele outro sentido, na medida em que conta a saga do que caminha para o fim. É um drama, ao mesmo tempo, individual e coletivo: a cidade e o “eu-lírico” rumam para o abismo do tempo. A existência vai-se apagando melancolicamente. Os canhões silenciam. Como no Bolero de Ravel, ouve-se o toque triste e triunfal de quem marcha para uma sentença de morte.


Em busca da inocência perdida

A partir dessa visão peculiar sobre passado e futuro, chega-se à última lição da Escola do Sonho.
A Modernidade caracteriza-se pela crença no futuro. De um lado, os liberais e sua crença no indivíduo; de outro, os socialistas e sua crença no Estado. Ambos parecem adversários, mas na verdade são frutos de uma mesma mentalidade: a razão progressista. No Brasil, acima dos conflitos aparentes das legendas partidárias, nenhuma voz discordante ousa questionar o desenvolvimentismo dominante desde 1930.
Creio seriamente que ainda está para ser escrita uma Crítica da Razão Progressista, mas essa é outra discussão. O fato é que, como todo grande poeta tem muito de filósofo, a cantiga de José Chagas subverte a cantilena do senso comum brasileiro: em vez de buscar num futuro utópico a construção de uma Terra-Sem-Males, o poeta procura numa infância mítica o estado de pureza que a alma envilecida pela crueza do mundo corrompeu.
José Chagas está constantemente em busca dessa inocência perdida. Ele sofre por haver-se distanciado da paz genuína daquela gente simples de Santana dos Garrotes:
SONETO 12
Minha mãe não sabia que seu filho
iria ser só isso que hoje é,
nem sabe agora que por onde trilho
piso mais chão de mágoas que de fé,
e esse pó de incertezas que palmilho
obriga-me a voltar na vida até
onde, fechado em solidão, me humilho,
a acompanhar um sonho em marcha à ré,
lembrando o tempo em que eu plantava milho
a abrir o chão da vida com o meu pé,
e mamãe repetindo em estribilho,
toda manhã, na hora do café,
meu nome tão de santo, mas sem brilho,
hoje muito mais chagas que José.

SONETO 8
Meu pai sabia a vida, e o seu destino
era o de quem não diz e apenas faz,
dando-me o testemunho nordestino
de homem comum que não corria atrás
de ilusões gastas pelo desatino,
pois bem sabia o que era ser capaz,
e orvalhado no sonho matutino,
laborava o seu dia e era sagaz
ao me testemunhar do ser menino
até o quanto em mim se fez rapaz,
quando meti as mãos pelo destino,
sem me importar com o que o destino traz,
e hoje o que peço aos céus, quando o imagino,
é que eu não seja um peso em sua paz.

LXXXVII
E eu traí a mim mesmo e aos companheiros,
pois passei a lavrar noutro terreno,
latifúndio verbal de mil posseiros,
e sendo sempre um lavrador pequeno,
que, embora plante sonhos verdadeiros,
nunca faço o plantio ficar pleno
de frutos, como o de outros fazendeiros,
e às vezes me deparo com o veneno
de serpentes em botes traiçoeiros,
ou jogam-me águas sujas, mas eu dreno
o chão onde cultivo os meus canteiros
com carinhos de sol e de sereno
e, esmagando os insetos mais rasteiros,
é para o céu que eu olho e que eu aceno.

Sua vida está assim arremessada entre a impossível conquista da paz que o vento do destino apagou e a reconquista de outra paz duradoura. É a síntese filosófica de uma nova relação passado/futuro proposta no livro De Lavra e de Palavra...

O Óleo da Tocha: Tradição e Despedida
Este ensaio não pretende ser um estudo acadêmico da obra de Chagas, daí minha informal despreocupação no protocolo das referências bibliográficas, bem como das citações e até da metodologia empregada, que o leitor indulgente perdoará.
A Escola do Sonho resume tudo o que aprendi com José Chagas: a poesia colhida em silêncio; o exercício da técnica verbal; as riquezas da infância; a transcendência da realidade partindo sempre da experiência imediata; a dívida com a tradição familiar e suas raízes.
Num fragmento lapidar, G. K. Chesterton assim definiu a tradição: “Nunca consegui entender onde as pessoas foram buscar a idéia de que a democracia de algum modo se opunha à tradição. É óbvio que tradição é apenas a democracia estendida ao longo do tempo [...]. Tradição significa dar votos à mais obscura de todas as classes, os nossos antepassados. É a democracia dos mortos. [...] Todos os democratas objetam a desqualificação pelo acidente do nascimento; a tradição objeta a desqualificação pelo acidente da morte. A democracia nos pede para não ignorar a opinião de um homem bom, mesmo que ele seja nosso criado; a tradição nos pede para não ignorar a opinião de um homem bom, mesmo que ele seja nosso pai. Eu acrescentaria: a tradição é o fio condutor da história. Reconhecê-la é reconciliar-se consigo, pois é preciso descer às próprias origens para entender a si mesmo.
            Como jovem escritor, confesso a pretensão de sentir-me herdeiro da tradição de José Chagas. Não vai nessa afirmação a presunção de ombrear-me a ele, mas o reconhecimento grato do quanto lhe devo no aprendizado da literatura.
            Este livro é, assim, uma visita de cortesia que uma geração oferece a outra. Só por isso vocês me perdoarão o cabotinismo incorrigível, mas não resisto à tentação de concluir o presente ensaio com um poema...
Para muitos, a crítica literária deveria ser objetiva, solene e catedrática. Mas eu não passo de um crítico literário por acidente, leitor apaixonado e poeta amador que financia do bolso suas próprias edições, privado da erudição que me permitiria melhor interpretar José Chagas e situá-lo com exatidão no panorama da literatura ocidental.
Deixo simplesmente no túmulo do poeta maior o presente pueril que um menino exultante corre para oferecer ao mestre:
            A JOSÉ CHAGAS

Na tua escola do sonho,
tive as primeiras lições,
e hoje o que eu mesmo componho
são decalques de canções

mal traçadas, onde exponho
as tenebrosas visões
do meu preparo medonho
para a ceia dos leões.

Mas, se o meu canto carece
daquela forma mais pura
que o mestre faz e desfaz,

o que mais ele procura
é ser um pranto de prece:
que Deus me ensine a tua paz.




[1] Seus livros sequer constam do catálogo da Livraria Cultura, da Saraiva, da Amazon e outras distribuidoras de porte equivalente. Entretanto, sua Antologia Poética organizada pelo erudito Sebastião Moreira Duarte e outros títulos como Os canhões do silêncio são encontráveis em sebos do Brasil inteiro, disponíveis em www.estantevirtual.com.br.

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