terça-feira, 21 de outubro de 2014

A Sede



O povo pirahã




Eduardo Siebra, 21/10/2014 (Brasília)

            Vou fazer uma afirmação audaciosa, mas de cuja verdade estou convencido: quase toda cultura desencadeia, nas pessoas que dela fazem parte, uma aguda pulsão religiosa. Mencionarei em breve uma intrigante exceção, porém acho que, como regra, é justo reconhecer essa inclinação como realidade. Ela é mais abrangente do que imaginamos, e se manifesta mesmo em pessoas que não se definiriam como religiosas.
            É uma inexplicável sede, algo como uma inquietação ontológica, como se não estivéssemos plenamente convencidos da realidade dos objetos, uma desconfiança do mundo, do momento presente e da transitoriedade das coisas. Será possível que o que vemos seja tudo? E antes? E depois? E além? Dotados de uma imaginação que não se contenta com o aqui e agora, imaginamos deuses e buscamos refúgio neles. Ou, o que talvez seja ainda mais perigoso, imaginamos significados ocultos para a vida, um sentido e direcionalidade para a história, e nos convencemos da necessidade de realizarmos, com suor e sangue, terríveis destinos para nós reservados.
            Muitos eruditos já alertaram sobre os riscos de perdemos de vista o caráter religioso de muitas de nossas ideologias seculares. Porém, se os potenciais desdobramentos da inclinação humana ao sagrado são bem conhecidas, resta uma névoa sobre as possíveis explicações para essa persistente tendência. Costuma-se aceita-la como um dado, e investir mais energia na investigação de seus desdobramentos.  
            Por que praticamente todos os povos possuem mitos de criação? Por que é tão disseminada a crença na imortalidade da alma, e numa vida após a morte? Por que existem as profecias sobre o fim do mundo? Os antropólogos catalogaram extensivamente a manifestação histórica desses fenômenos, porém é raro encontrar alguém que se aventure a apresentar uma explicação geral que dê conta de sua quase universalidade.
            É tentador imaginar alguma misteriosa pulsão instintiva – à moda freudiana – que nos provocasse essa ânsia de absoluto. Seria algo inato que de alguma forma estaria gravado em nossa mente – do mesmo modo que está gravado o instinto de preservação. Pessoalmente acho que essa explicação é simplista, e deixa de lado importantes evidências relacionadas ao uso da linguagem pelo homem. Afinal, se se tratasse de uma inclinação biologicamente determinada, por que ela se manifestaria apenas nos homens?
            Sabe-se que muitos animais possuem sofisticadas formas de comportamento instintivo. Encontram-se na natureza diversos rituais, com finalidades reprodutivas ou sociais (como, por exemplo, definir a posição de um macho dentro de um grupo). Já se sabe, também, que muitas espécies desenvolveram complexas e versáteis formas de comunicação (que talvez ainda estejamos, com nossa presunção hominídea, longe de decifrar). Porém, em todas as manifestações identificadas pela etiologia, não há nada que pudesse ser comparado – só para dar um exemplo – à distinção profundamente humana entre as dimensões sagradas e profanas da vida. O ritual biológico que se encontra na natureza é, num certo sentido, utilitário, já que ele serve a um propósito instintivamente reconhecido, ligado à reprodução ou preservação individual ou coletiva. O ritual humano, ao contrário, é aprendido, e muitas vezes serve a finalidades culturais que, de um ponto de vista estritamente fisiológico, não poderiam ser definidos como vantajosas ou desvantajosas. A cultura tem um elemento utilitário forte, mas ela não é escrava dessa dimensão da vida, nem sequer da biologia.
            Parece-me bastante óbvio, portanto, que a cultura está de alguma forma relacionada à presença da nossa pulsão religiosa. O que não está de modo algum claro é que elemento específico da cultura faz com que essa pulsão seja tão generalizada e tão abrangente. Que aspecto da vivência cultural, enfim, desencadeia a religião na alma humana?  É difícil responder essa pergunta justamente porque, no que diz respeito à presença ou não do fenômeno religioso, as diferentes sociedades humanas são muito parecidas – o que torna difícil estabelecermos suposições comparativas. Para fins de contraste, possuímos apenas os animais – vivendo despreocupadamente seu eterno presente – porém estes não nos servem para identificar o elemento cultural que estamos buscando porque os bichos carecem da cultura mesma, pelo menos se a definirmos com base numa linguagem figurativa, simbólica.
            Para que o mistério pudesse ser solucionado, ou seja, pare que pudéssemos identificar que elemento cultural é responsável pelo aparecimento da ansiedade metafísica do homem, precisaríamos ser capazes de comparar a cultura não com uma não-cultura, mas sim com uma cultura que se caracterizasse justamente pela inexistência dessa pulsão. Para nossa sorte, uma tal cultura parece existir, perdida no meio da imensidão verde da floresta amazônica. Ou pelo menos é o que afirma um polêmico linguista americano.
            Os pirarrãs da Amazônia se tornaram famosos depois que o missionário Daniel Everett passou vários anos com eles, estudando seu idioma. Seguno Everett, eles são um dos raros povos que não possuem mitos da criação. As características supostamente identificadas na língua pirarrã são tão incríveis que levaram outros linguistas – dentre os quais o próprio Noam Chomsky – a acusar Daniel Everett de charlatanismo. Eles supostamente não possuem números, nem palavras  abstratas para cores (possuindo apenas os conceitos de "claro" e "escuro"), nem aquilo que Chomsky chama de "recursividade" gramatical, ou a capacidade de retomar ou repetir elementos do discurso anteriormente referidos (e.g. "Essa é a menina de que eu falei."). Ao contar uma história, os pirarrãs possuem ferramentas indiretas para retomar o que já foi dito, porém eles não são capazes de fazer isso gramaticalmente.  Daniel Everett chegou ao ponto de afirmar que a falta de recursividade do idioma pirarrã era uma prova de que a suposta "gramática universal" de que fala Chomsky simplesmente não existia: a língua não é um atributo humano inato, mas sim um instrumento que surge da necessidade concreta de se comunicar.
            A característica da cultura pirarrã que mais nos interessa, porém, é sua relutância em se referir ao passado ou futuro distantes. Embora seu idioma seja capaz de evocar acontecimentos passados, o evento em questão precisa ter sido efetivamente vivido ou testemunhado por alguém para que seja de interesse – ou, para colocar de forma mais pomposa, para que tenha valor epistemológico.  Os pirarrãs, portanto, não estão interessados em nada que esteja fora do mundo imediatamente vivenciado. A fabulosa consequência disso é que eles, embora admitam a presença de alguns espíritos no mundo em que vivem (e mesmo de criaturas cosmológicas que habitam outras dimensões da vida), não tem qualquer interesse em deuses ou mitos da criação. Everett jamais conseguiu convertê-los ao cristianismo, e eles perderam completamente o interesse sobre Jesus Cristo quando souberam que o missionário nunca o tinha visto pessoalmente! A ironia é que, à medida que se aprofundava no conceito de verdade dos pirarrãs, o próprio Daniel Everett foi perdendo sua fé (essa experiência é narrada no livro Don't Sleep: There are Snakes). Hoje ele é um ateu.
            Chega a parecer óbvio que um povo que carece de mecanismos linguísticos para se referir a abstrações ou ao passado e futuro distantes não seja capaz de desenvolver uma mitologia. Mas a percepção não é casual. Se as alegações de Daniel Everett a respeito da cultura desse povo forem verdadeiras, isso pode significar que a pulsão religiosa a que me referi no começo deste texto não é, de maneira alguma, uma pulsão humana inata! Não existiria, portanto, uma inclinação natural e espontânea ao transcendente: isso seria um desdobramento do desenvolvimento da linguagem.  
            Kant, numa intuição puramente abstrata e genial, já havia demonstrado na Crítica da Razão Pura que algumas de nossas ideias religiosas são – pelo menos desde um ponto de vista filosófico – miragens conceituais, que ele chama de antinomias da razão pura. Num dos capítulos mais memoráveis da história da filosofia ocidental, Kant observa que questões como "terá o mundo um começo e um fim, ou será ele eterno?" e "o universo possui um limite no espaço?" simplesmente não fazem sentido. Simplificando de forma grosseira o argumento do filósofo, poderíamos apresentar o problema da seguinte forma: nossa percepção do mundo se dá por meio do tempo e do espaço (que Kant diz ser, na estética transcendental, aspectos da cognição humana, e não características intrínsecas do universo). Podemos, ao nos referirmos a um determinado acontecimento, imaginar o que veio antes dele, e posteriormente nos perguntarmos o que veio antes desse segundo momento, e assim sucessivamente, ad infinitum. Porém a pergunta: "Quando tudo começou?", que emerge, quase que de forma natural, desse exercício de regressão no tempo, não faz sentido, pois para saber o que há antes do tempo, precisamos nos valer da própria noção de tempo. Não há, portanto, um meio como a cognição humana possa imaginar o tempo como um todo, uma completude, e então perguntar "o que havia antes disso?", já que essa pergunta já pressupõe o próprio tempo. Do mesmo modo, perguntar onde começa e onde termina o espaço não faz o menor sentido, pois para definir os limites do espaço tomado como um todo, precisamos nos valer da própria noção de espaço. Não há um "fora" do espaço, pois dentro e fora já são noções espaciais.  
            O que Kant define como uma armadilha da razão, eu diria que é, também, uma armadilha da linguagem. O caso do povo pirarrã talvez nos ajude a compreender isso de forma mais clara. Por possuírem recursos verbais relativamente simples – pelo menos no que diz respeito à categorização dos tempos – a consciência pirarrã está muito satisfeita com o aqui e o agora. Nem que quisessem eles poderiam perder-se em especulações sobre o começo de tudo, ou sobre o fim da história. O que há é o que se vê, o que se come, o que se cheira, e pronto! Quanta sabedoria filosófica não haverá por trás desse desinteresse?
            Muitos são os linguistas que contestam as afirmações de Everett. Há mesmo os que dizem que a língua pirarrã possui, sim, recursividade. Independentemente de ele estar certo ou não, acho que suas afirmações, ainda que equivocadas, levantam um debate intelectual muito interessante. Pode parecer um despropósito afirmar que é a linguagem humana – ou a mente – que constituem o futuro e o passado.         De um ponto de vista filosófico, porém, talvez esta seja a única posição defensável. O próprio Schopenhauer – esse diligente kantiano – observou que o locus da mente é o presente – esse ponto de virada na cachoeira do tempo, em que as águas do futuro a todo instante se despejam no abismo do passado. É temeroso afirmar que só o presente é real, mas, enquanto sujeitos conhecedores, só podemos estar seguros de sua realidade.
            Essa é uma verdade que se aplica plenamente à experiência de vida dos animais. É claro, eles possuem memória, e são capazes de aprendizado, porém sua consciência – até onde vai nosso conhecimento – está plenamente absorvida no instante. Isso por um motivo muito simples: eles carecem do instrumento cognitivo que lhes permitiria vagar mentalmente pelas imensidões do antes e do depois: a linguagem.
            Pessoalmente, sou um objetivista, e acredito que futuro e passado sejam reais. Porém reconheço que minha convicção é um ato de fé: fé numa determinada ontologia que eu não posso, por argumentos estritamente filosóficos, provar.  Mas, mesmo que tomemos essas dimensões como reais, ainda assim precisamos reconhecer que a  linguagem é o veículo de que se vale a mente para libertar-se da experiência imediatamente vivida e projetar-se temporalmente (com auxílio, claro, da memória e da imaginação). Esse possivelmente foi um dos momentos mais definidores da evolução da consciência humana, o instante em que desenvolvemos uma linguagem sofisticada o bastante para se referir à temporalidade. Pois quando a gramática humana destrancou as portas do antes e do depois, nasceram, simultaneamente, o céu e o inferno.
            A inquietação metafísica do ser humano talvez nasça exatamente de nossa capacidade de divagar pelo tempo. O presente se basta: ele está aí, o sol brilhando, as cigarras ciciando, as folhas balançadas pela brisa da tarde. É uma plenitude que não demanda explicações, não desencadeia regressões causais infinitas. Quando muito ele pode evocar, por oposição, uma reconfortante ideia de Vazio, que alguns místicos dizem se confundir com o próprio Ser, e cuja compreensão talvez pudesse ser definida como a derradeira iluminação espiritual. Mas o presente carece de uma justificativa ontológica radical.
É quando a consciência olha para trás e para frente que as inquietações surgem: severos demiurgos transformando o nada primordial em ordem, demônios colossais desfazendo a mundo no instante do fim. É uma vastidão grande demais para que o homem possa suportá-la: ai de nós, criaturas tão insignificantes diante de um infinito que imaginamos ver em todas as direções! Não, tamanho Abismo é horroroso demais para que nossa consciência possa suportá-lo, é imperioso preenchê-lo de algum modo, sejam com deuses, seja com os nossos bondosos ancestrais, seja com a figura tranquilizadora de um Pai cuidadoso, que nos reservou algum desígnio secreto... Qualquer coisa, menos a terrível miragem do Nada que nossa mente descobriu quando se debruçou sobre os limites do tempo. 
Pior que tudo, ao projetar sua consciência, o homem também descobre a história: um eterno drama, um inclemente vir-a-ser que jamais nos dá folga, sempre avançando em direção a um ominoso destino, ou, o que talvez seja ainda mais sombrio, uma repetição de tragédias destituídas de sentido.  Será tudo por acaso? Será a história eterno repetir de erros e de sofrimentos? É preciso encontrar um sentido para o diabólico girar da roda do tempo, é preciso estabelecer metas, razões, pois de outro modo não poderemos suportar o tédio e o desespero dos dias que se repetem.
Se as proposições acima forem verdadeiras – ou seja, se a angústia metafísica humana não for inata, mas nascer de uma extrapolação mental da ideia de tempo (à moda das antinomias kantianas) – isso talvez signifique que estamos próximos de uma importante (re)descoberta intelectual: a de que a sede é, na verdade, o elo perdido que une o fanatismo religioso ao secular.
Tendemos, por uma conveniência acadêmica, a estudar o fenômeno religioso e o político como manifestações culturais distintas. É algo muito arraigado à tradição secular do ocidente: a Deus o que é de Deus, a César o que é de César. A política trata da distribuição de poder na comunidade organizada, a religião deve tratar apenas das questões propriamente "espirituais". Essa categorização é conveniente como técnica social, mas de modo algum se justifica se refletirmos mais profundamente sobre os dois fenômenos.
Acontece que a inquietação espiritual não é uma exclusividade do homem religioso. Se um homem abandona a ideia de um Deus criador (talvez por supor, como Freud, que isso é uma reconfortante mas inverossímil projeção de uma figura paterna pelo inconsciente), nem por isso o abismo existencial que se estende em seu entorno se torna menos desesperador. O passado continua parecendo uma escuridão vertiginosa, o futuro, uma ameaçadora incerteza. A posição humana na história parece ser de completa fragilidade – uma criatura perspicaz, mas que está condenada a ter que dar o melhor de si para domar forças que parecem, a todo instante, fugir de seu controle.
A sede continua lá. Não deixamos de nos perguntar "de onde viemos?" e "quem somos?" simplesmente por não acreditarmos mais em Deus. Continuamos sentindo a velha necessidade de justificar nossa posição no mundo, de encontrar fundamentos e justificativas que, se não nos consolam, pelo menos parecem atribuir um significado ao que de outro modo pareceria uma enlouquecedora sucessão de eventos.   
Não é por acaso, portanto, que as ideologias políticas, como as religiões, costumem possuir todas narrativas fundadoras, mitos legitimadores e, em alguns casos, verdadeiras escatologias – anunciadas, vejam só, também por profetas barbudos! Supor que o papel da política seja o de abordar os problemas de agora não basta: a história precisa ter um significado, a humanidade está evoluindo, e nas brumas do futuro alguns são capazes de discernir os reflexos fantasmagóricos de um paraíso terreal. Às armas, cidadãos, pois a concretização desse sonho é o supremo objetivo que nós poderíamos desejar. Que venha o Apocalipse, e com ele, o Reino dos Justos.
A recorrência histórica do messianismo político talvez seja um indício da persistência de nossa apreensão metafísica. A França jacobina, a Itália fascista, a Alemanha nazista, a Rússia soviética, a China maoísta, a Coreia do Norte jucheísta: todos são exemplos de ideologias supostamente seculares que se inspiram numa forte noção de direcionalidade histórica – a suposição de que a humanidade está partindo de estágios menos evoluídos para outros mais avançados. E é simplesmente assombrosa a capacidade das doutrinas fundadoras desses países de ignorarem toda e qualquer evidência empírica que questione seus pressupostos essenciais, mesmo os fáticos. Não se trata, afinal, de explicar casuisticamente um ou outro acontecimento, mas sim o de dar um sentido à História tomada como um todo, o de tirar o peso da absoluta imprevisibilidade dos acontecimentos de nossas costas, e depositá-lo nos ombros de um fabuloso monstro – o Destino – que nos arrastará, mesmo que ao custo de milhões de vidas, para o futuro.
Mesmo os sistemas políticos que aparentemente não parecem padecer tão gravemente das escatologias históricas – como o liberalismo, que supostamente depende de constante cooperação de atores que estão preocupados com pouco mais do que seu próprio bem-estar – podem padecer, num nível subliminar, de uma concepção evolucionista. O humanismo secular de nosso tempo, com sua inclinação ao antropocentrismo, costuma considerar como quase inquestionável a suposição de que o homem é o ator principal do drama histórico. Isso desemboca numa visão profundamente otimista sobre nosso papel no universo: não importa quão estúpidas sejam nossas escolhas coletivas, não importa quão grande o estrago que provocamos no meio ambiente: no fim das contas tudo dará certo, pela simples razão de que não poderia ser de outro modo! Afinal, a história humana é o verdadeiro drama cosmológico, e a ciência – esse instrumento divino dado a nós por Prometeu – necessariamente encontrará uma solução para todos os nossos problemas.[1]
            Por termos nossa experiência de vida condicionada por uma linguagem que nos inclina, a todo instante, à apreensão quanto aos limites últimos da realidade, estaremos condenados a sempre cair no erro, seja sublimando nossas ansiedades pelas miragens de demiurgos antropomórficos, seja inconscientemente extravasando pela política nosso medo da contingência? Eu diria que não, e que são dois os remédios ao nosso alcance. 
Muito antes dos ocidentais, os asiáticos perceberam a capacidade libertadora do momento presente. Não é outro o ensinamento da meditação: trazer a consciência para o agora, deixar de lado os arrependimentos, as apreensões e buscar, com o auxílio da respiração – esse poderoso recurso místico – trazer a mente de volta para o instante. E é nesse ato de retorno ao agora que o discípulo tem mais chances de contemplar a verdadeira face de Deus: confrontado com o presente, aquele que medita precisa se confrontar, por um lado, com o mundo tal qual ele efetivamente se mostra (ainda que como fenômeno) e, por outro, com seu verdadeiro eu, não condicionado pelas memórias e pelas expectativas. Essa redescoberta do eu é profundamente libertadora. Pela interiorização da consciência o homem tem esperanças de escapar à armadilha teológica do regresso ao infinito – de tentar buscar no tempo um assombroso instante em que tudo se fez do nada – e experimentar a delícia da criação como o que ela é – uma eterna atualização e uma eterna intervenção benevolente. Com isso se desvanecem os abismos com a qual nossa mente gosta tanto de se deslumbrar, e tranquilizados podemos reassumir nossas vidas com mais leveza. Acho curioso que o linguista Daniel Everett tenha definido a gramática pirarrã – talvez num inconsciente mea culpa cristão ou numa projeção de expectativas suas – como sendo a gramática da felicidade. Causou-lhe intensa impressão a descoberta de como era feliz um povo que preferia viver – ao contrário de nós – no presente.    
O primeiro dos remédios contra a sede, portanto é a meditação, por sua capacidade de resgatar o presente. Não minimizemos o seu potencial. Um homem que medita seriamente não se atreveria a aderir a um movimento político salvacionista, que supõe serem justificáveis terríveis crimes em nome da concretização de um ideal. Que males nós não evitaríamos se a sociedade como um todo aprendesse a meditar – ou seja, a ver as coisas como ela realmente são, sem os filtros das nossas expectativas e sem o peso dos nossos rancores.
E a segunda solução? Bem, a segunda solução é ler Kant. Mais especificamente o capítulo sobre as antinomias da razão pura de sua mais famosa obra.
Quem o entender estará livre dos abismos.  




[1] Aqui mesmo em nosso quintal estamos padecendo de um grave quadro de dissonância cognitiva política. A crença de que o Brasil está se tornando uma sociedade mais justa, mesmo que possa ser amparada por algumas evidências empíricas, possui um claro elemento mitológico, cuja função legitimadora torna-nos cegos a qualquer evidência ou opinião que pudesse questionar o dogma central. Como resultado, tornamo-nos um povo sem qualquer senso de autocrítica e, o que talvez seja muito mais perigoso, sem qualquer interesse por boas práticas de gestão pública.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Pyongyang Honeymoon ou "O Poder da Banalidade Doméstica"

O Grande Líder é grande mesmo.


Eduardo Siebra, em 24/09/2014 (ano 103 do Calendário Juchê)


Observações preliminares:

 1- Todos os pontos de vista apresentados neste artigo refletem unicamente a opinião do autor. Nenhuma das afirmações, portanto, pode ou deve ser tomada como sendo representativa de posições oficiais.  Quem quer que não consiga compreender essa sutileza sofre de grave dissonância cognitiva e a estes – sejam eles blogueiros ou jornalistas mal-intencionados – eu recomendo fortemente o procedimento da lobotomia.

 2- Uma versão editada deste texto foi publicada no blog Jovens Diplomatas. A versão que ora publico é a versão completa, com argumentos que não constam no texto anteriormente publicado. 




               Coloquemos da seguinte forma: se eu tivesse chegado à Coreia do Norte sem jamais ter ouvido algo a seu respeito, certamente teria saído de lá com uma impressão muito negativa. Porém, como desde que me entendo por gente escuto coisas horrorosas sobre o país, seus governantes e seu povo, tenho que admitir que encontrei em Pyongyang algo muito diferente do que esperava encontrar.
               Decidi ir para lá porque, infelizmente, o Brasil ainda não possui embaixada em Marte. Algumas pessoas entram na diplomacia porque querem ter uma vida boa e morar perto de um lugar onde possam ter acesso fácil a bons croissants e queijos fedorentos. Eu, como venho de uma cidade com tão alto nível civilizatório como o Crato – onde se encontra grande provisão de todas as comodidades mundanas e transcendentais – escolhi essa profissão não pelos brioches, mas por desejar viver uma experiência de alteridade.
               Quis ir à Coreia do Norte, portanto, por supor que lá eu encontraria uma realidade radicalmente diferente de tudo a que eu estava acostumado. Esperava encontrar alienígenas, ou pelo menos os habitantes robóticos de uma distopia orwelliana. Claro, não sou desumano a ponto de ter me tornado um turista do horror: o que me motivava não era uma curiosidade mórbida pelo alardeado sofrimento do povo coreano, mas sim o desejo semi-antropológico de compreender a insistência desse país em fazer tudo do jeito que faz.
               Posso aqui confessar perante as testemunhas do plano material e astral: o que mais me surpreendeu na minha curta passagem pelo Reino Ermitão foi a banalidade da vida cotidiana que testemunhei nas ruas. Sabem aquelas fotos mostrando largas avenidas cinzentas, sem nenhum carro ou pedestre, e apenas uma intimidadora – mas charmosa – guardinha de trânsito severamente observando o tempo passar? É tudo mentira! Pyongyang é uma cidade cheia de vida – ou, o que dá no mesmo, cheia de gente! E as policiais de trânsito gatinhas trabalham pra caramba, sem jamais perder a pose!
               É claro, as crianças estão todas com os uniformes da União dos Pioneiros Socialistas. Os homens estão indo trabalhar vestidos em ternos Mao Zedong. As mulheres desfilam em comportados tailleurs – ou naquelas horrorosas roupas tradicionais coreanas (que cometem o imperdoável pecado de esconder os corpos de algumas das mais belas mulheres da Ásia do Leste). Mas tirando isso, e tirando os carros de boi, os veículos militares saídos diretamente de um filme de época, e a enorme profusão de soldados socialistas – todos prontos a causar as mais terríveis dores de cabeça a eventuais invasores imperialistas que cometessem o erro de tentar ocupar esse bravo e teimoso país – a vida parece seguir normalmente, como em qualquer outro lugar.
               Que a verdade seja dita: em Pyongyang não há toque de recolher. Tudo bem, a noite é um breu, porém isso não impede que verdadeira multidão caminhe pelas ruas – totalmente indiferentes ao risco de serem atropelados pelos motoristas que quase não os conseguem enxergar naquele escuro. Também não vi soldados apontando suas metralhadoras para uma população assustada: vi muitas crianças em idade escolar (algumas com quatro, cinco anos) caminhando sozinhas, sem o menor receio de serem vítimas de qualquer forma de violência. Vi grupos de jovens universitários andando animadamente, conversando sobre assuntos que com toda certeza eram da mais absoluta frivolidade. E vi gente dando risada com alguma piada que alguém havia contado.
               Não quero, aqui, dar uma de estrangeiro desavisado e ingênuo, e minimizar o peso do que é a vida num Estado como a Coreia do Norte. Talvez mesmo que tentasse eu não pudesse compreender a pressão psicológica que sofrem pessoas que são submetidas, desde a infância, a uma mobilização completa dos sentimentos e do imaginário político. Também não posso dizer que eu tenha conhecido a Coreia do Norte real, já que minha vivência esteve limitada à capital (onde eu podia me locomover livremente, desacompanhado por guias coreanos) e alguns pontos turísticos no interior. Tenho plena consciência de que permaneci nas partes mais simpáticas do país, e também de que não me foi permitido ir muito fundo na compreensão da vida do cidadão comum.
               Porém, posso garantir que o pouco que eu vi não foi uma encenação. Os velhinhos não estavam sendo pagos pelo governo para brincar com seus netinhos nas ruas – e, assim, transmitir uma boa impressão aos eventuais turistas que passassem por ali. Os jovens realmente ocupavam os espaços públicos de lazer, e acho pouco razoável dizer que as partidas de vôlei que eu vi eram apenas mais uma sessão de doutrinação socialista por meio da cultura física. O que acontece é que os norte-coreanos são pessoas como nós, e o mero fato de eles viverem num regime que tenta, de todas as formas, desenvolver seu senso de fervor patriótico e sua capacidade de heroísmo não os torna menos simpáticos à ideia de levarem uma vida tranquila e de se divertirem. Talvez eles apenas não possam, como nós, declarar abertamente essa sua inclinação.
               São pessoas que vão à escola, que fazem amigos, que namoram, que se preocupam com seus familiares, exatamente como acontece em qualquer outro lugar do mundo. Agora, claro, desde a pré-escola o norte-coreano é exposto, de todas as formas e por todos os meios, à doutrinação da ideologia juchê. No feriado nacional, eles têm que levar flores para a estátua de seus adorados líderes, e todo sábado eles participam de sessões de “estudos políticos”. Muito frequentemente o coreano tem de participar de mobilizações coletivas, tais como cerimônias patrióticas, deslocamentos ao interior para ajudar os camponeses durante a época da colheita de arroz, ou, pior de tudo, excruciantes sessões coletivas de cortar a grama dos espaços públicos usando uma mera tesourinha. Certamente é um povo que trabalha duro, e que está submetido, em média, a esforços e privações físicas muito mais severas do que as que estamos acostumados a ver nos países ditos liberais (e vamos, aqui, em deferência ao bom gosto pequeno-burguês, deixar de lado a complexa mas pertinente discussão sobre a condição dos miseráveis nos países ditos “livres”) . Porém, no tempo que lhes resta, os coreanos estão fazendo coisas banais: passeando com seus bebês pendurados nas costas, tomando soju com os colegas de trabalho, comendo kimchi e contando piadas. Talvez a verdade seja que não dá para simplesmente abolir a dimensão doméstica da vida e impor um estado permanente de fervor ideológico – ainda que seja exatamente isso o que desejam exigir de seus camaradas alguns dos líderes do país.
               Esse deslumbramento que experimentei em Pyongyang acontece com diversos estrangeiros que chegam pela primeira vez à cidade. Ele tem até um apelido na comunidade de expatriados: Pyongyang Honeymoon. Há vários fatores que o explicam.
1: A cidade é bonita. Como ela foi arrasada pelos bombardeios americanos durante a Guerra da Coreia, os arquitetos socialistas puderam criar sua cidade-modelo praticamente do zero. Algumas pessoas chegam a dizer que Pyongyang é a única capital 100% socialista do planeta. E embora se possa questionar o bom gosto de alguns de seus monumentos, não há como não admitir que o desenho da capital é impressionante. Seu traçado evoca a todo instante um ideal de grandeza e de heroísmo, mas sem sobrecarregar os espaços públicos com a parafernália socialista (eu diria até que eles, a seu modo, têm lá seu senso de sobriedade). As ruas são largas e arborizadas, há várias praças nas margens dos rios que cortam a cidade e as opções de lazer para a população não são poucas (incluindo parques de diversão, espetáculos circenses, parques aquáticos, boliches, etc). Especialmente deslumbrante é a visão da Torre Juchê iluminada à noite – uma enorme tocha vermelha tremeluzindo em meio às trevas da cidade, eternamente inspirando o povo coreano com o ideal de autossuficiência (vi alguns jovens que iam ao monumento à noite para estudar, não sei se para absorver emanações inspiradoras, não sei se porque a torre é um dos únicos locais permanentemente iluminados da capital coreana, onde os apagões são uma realidade diária).
2: Como já observei, os estrangeiros que chegam a Pyongyang costumam esperar algo muito pior. A quebra de expectativa tem, pelo menos nos primeiros meses, um efeito favorável na opinião do visitante a respeito do lugar. Isso costuma mudar à medida que o tempo vai passando, e à medida que o estrangeiro vai sentindo com mais intensidade os efeitos do severo isolamento a que ele está condenado quando vive na cidade (apenas alguns coreanos credenciados têm plena liberdade de conversar com pessoas de fora, e, por causa da paranoia do regime, mesmo estes não ousariam desenvolver laços muito estreitos com alguém que, em última instância, poderia se mostrar um espião a serviço dos imperialistas ou, pior ainda, um repórter da Veja).  
3: Pyongyang é uma cidade que claramente está em transformação. Quando comparada ao que era há quatro anos, a capital parece, segundo o relato dos estrangeiros que a conheceram no passado e no presente, uma cidade muito mais agradável, e com muito mais opções de entretenimento. Embora seja cedo para julgar o significado da chegada do novo líder ao poder, o impacto dessa mudança é visível nas ruas. Há muito mais carros circulando pelas avenidas hoje do que havia a apenas alguns anos atrás. As pessoas parecem se vestir com roupas mais coloridas e casuais (muitas delas fabricadas na China) e a quantidade de restaurantes, supermercados e outros empreendimentos privados é cada vez maior. Para o observador de fora, é excitante ver essas mudanças acontecendo, uma vez que elas evocam a possibilidade de um futuro melhor para o país e seus habitantes. A classe média coreana está crescendo, como uma erva daninha nos jardins do socialismo.
               4: O povo coreano é simpático. Não esqueçamos que os do norte são os mesmos que os do sul – tão amados por sua meiguice quase cafona e sua inclinação ao miguxo way of life. As crianças norte-coreanas, em especial, são umas gracinhas. Elas ficam boquiabertas quando avistam nas ruas essas criaturas de cabelos coloridos, olhos redondos e terríveis barbas e narizes! As mais audazes se aproximam e arriscam, com um sotaque extremamente carregado: “– Helooooooo!” Os adultos, também, demonstram muita curiosidade, e fica muito claro pela sua expressão que, se eles pudessem, seriam muito mais calorosos e francos com essas aberrações vindas de fora. Muitos membros da comunidade de expatriados em Pyongyang desenvolvem, ao longo do tempo, intensa antipatia pelos cidadãos do país, uma vez que é muito difícil estabelecer qualquer relação mais próxima e sincera com um habitante local. Porém esse preconceito desconsidera a delicada situação em que vivem os norte-coreanos: como esperar um comportamento franco de alguém que está sendo vigiado pelos seus pares? Sabe-se que a polícia norte-coreana conta com a ajuda de verdadeiro exército de informantes civis, que não hesitariam em delatar comportamentos suspeitos de um potencial traidor. (E não nos precipitemos em julgar o povo coreano como covarde pela sua disposição em denunciar vizinhos reacionários: eles são desde cedo educados a isso, e em sua mentalidade, identificar um potencial inimigo do regime é um dever cívico, mesmo que esse dever possa significar a desgraça de seu vizinho…)
               Também é preciso notar que a Pyongyang honeymoon é fruto de uma experiência restrita à capital. A Coreia do Norte tem pouco mais de 20 milhões de habitantes. Em Pyongyang vivem umas 3 milhões de pessoas – incluindo aí praticamente toda a elite política do país. É uma cidade-vitrine, que não reflete as reais condições de vida no campo. Estima-se que um grande percentual das crianças norte-coreanas, em especial aquelas que vivem nas zonas rurais, ainda estejam subnutridas. As condições de saúde e de moradia nas regiões mais ermas são incomparavelmente piores. Ouvi relatos de estrangeiros que tiveram oportunidade de ir ao interior do país – para acompanhar a implementação dos programas de ajuda humanitária – sobre pessoas que eram obrigadas a trabalhar de sol a sol, ao ensurdecedor barulho de alto-falantes que repetiam incessantemente mensagens de doutrinação política. Não quero nem imaginar o que aconteça no nordeste do país – na terrivelmente gélida região onde se acredita que existam as prisões políticas. A Coreia do Norte não é um passeio para os seus cidadãos, e posso garantir que eles são as principais vítimas do sistema que ainda vigora no país.
               Ainda assim, acho que essa inesperada simpatia que senti por Pyongyang (e que muitos outros estrangeiros também sentem) é significativa. Por um lado, ela mostra que o relato comumente transmitido sobre a Coreia do Norte pelos meios de comunicação ocidentais é, se não mal-intencionado, pelo menos tendencioso ou desinformado. As condições certamente não se comparam às do sul da península, mas a cidade nem de longe se assemelha ao inferno pintado pelos adversários do regime. Por outro lado, entender que os norte-coreanos são pessoas normais como nós torna inevitável uma importante e esclarecedora questão: por que, então, eles continuam seguindo esse caminho de isolamento e confrontação, que os leva a serem um país com uma das piores reputações do mundo?
               Praticamente toda análise a respeito da Coreia do Norte produzida no Ocidente – com a notável exceção da de alguns acadêmicos que já foram ao país – parte do pressuposto nem sempre anunciado de que o Estado coreano tem o comportamento de um psicopata, ou seja, de uma pessoa sem a menor consideração pelo sofrimento de outros seres humanos – incluindo aí sua própria população. As elites do país seriam, segundo essas análises, uma casta de maquiavélicos diabólicos, dispostos a sacrificar o sangue de seus compatriotas, desde que eles mesmos possam usufruir das regalias materiais a que apenas eles têm acesso.
               Esse modelo interpretativo do comportamento norte-coreano cumpre uma função psicológica no nosso relato do que é a Sociedade Internacional. Existe um mundo no qual todos gostaríamos de viver – um mundo sem guerras. Há países que se esforçam para criar esse mundo – as democracias – e há países que são um obstáculo à sua criação – aquilo que os americanos costumam chamar de Eixo do Mal. Tendo em vista o bem maior que é a realização do tão almejado sonho da paz, torna-se não apenas justificável, mas até mesmo necessário o uso da força contra os Estados que são considerados vilões. Se essa intervenção provocará sofrimentos à população civil, esse é um sacrifício que se justificaria à luz do bem maior futuramente alcançável (a própria libertação da população subjugada).
               A Coreia do Norte, portanto, ocupa no imaginário ocidental o papel do antagonista. Ela é o oposto da imagem que o Ocidente usa para se definir, ou seja, por negação, o país ajuda a delinear a identidade ocidental. Projeta-se nele, portanto, todos os pecados aos quais não gostaríamos de estar associados: manipulação midiática das massas, truculência, militarismo inconsequente, etc. 
               Será que é tão simples? Ainda que possa haver alguma verdade nesse relato, não seria o caso de nos perguntarmos o que leva alguém a se tornar um "vilão"?
               O observador russo Andrei Lankov já demonstrou o quanto há de falso na visão estereotipada que as pessoas costumam reproduzir sobre a Coreia do Norte, e mesmo sobre seus líderes. Remeto o leitor curioso ao esclarecedor livro "The Real North Korea", no qual Lankov observa que o comportamento das elites norte-coreanas ao longo das últimas décadas não é nem de longe inconsequente, mas demonstra uma capacidade muito racional de avaliar quais são as reais chances de sobrevivência do regime num mundo que simplesmente não está disposto a aceitar sua existência. Acho, todavia, que além do mero calculismo geoestratégico, o comportamento das elites e do povo da Coreia do Norte representa um dos casos mais emblemáticos de um fenômeno político típico do mundo posterior à Revolução Francesa, e até hoje pouco compreendido.
               Muitos são os norte-coreanos que ficam sinceramente chocados quando descobrem que são vistos no exterior como uma espécie de criminosos. Eles mesmos se consideram um povo heroico – que lutou bravamente contra a dominação estrangeira e que até hoje está tentando afirmar seu espaço de sobrevivência num meio internacional incrivelmente hostil. Não esqueçamos que quando o país foi criado, o comunismo ainda parecia uma boa ideia – em especial para um povo que havia acabado de sair de um regime feudal, seguido pela truculenta ocupação japonesa. Os guerrilheiros coreanos que primeiro aderiram ao movimento certamente estavam inspirados por nobres ideais. O fervor com que eles abraçaram a causa socialista se explica pelo fato de eles realmente acreditarem que estavam cumprindo uma missão patriótica.
               A história subsequente é bem conhecida. A realidade não se conformou bem ao sonho utópico de uma sociedade sem classes, e os que começaram sendo os bem-intencionados guias da marcha rumo à igualdade acabaram por se tornar uma nova casta dominante que se viu subitamente diante da terrível contradição de, por um lado, não serem capazes de realizar as promessas de prosperidade antecipadas por sua ideologia e, por outro, de não poderem reverter o processo revolucionário em nome dessa almejada prosperidade, sob pena de serem eles mesmos aniquilados durante a queda do regime vigente. Eles se tornaram, num certo sentido, reféns de um monstro que eles mesmos criaram – e que em mais de uma ocasião gerou a desgraça dos próprios membros dessa elite política (nos assustadores expurgos tão comuns à prática stalinista). E a partir de então eles foram para sempre amaldiçoados pela necessidade de ter que perseguir duramente todos os que tivessem a audácia de cometer a suprema transgressão: dizer a verdade, admitir que o paraíso prometido talvez não fosse assim tão bom…
"O Socialismo também quer lascar você!"
               Longe de mim justificar os atos que já foram praticados em nome da estabilidade do regime ou da perpetuação do ideal revolucionário. Que cada violência cometida contra outro ser humano, independente das motivações políticas subjacentes, esteja para sempre associada não apenas à memória do sistema que o provocou, mas também à de seu autor, da pessoa que individualmente foi o veículo desse mal. Porém acho importante – inclusive como forma de auto-policiamento – tentar compreender que tipo de contexto histórico pode criar uma situação em que inofensivos burocratas se tornam cúmplices de violências legitimadas.
               Mais do que uma criação de demônios sanguinários, a Coreia do Norte talvez seja o trágico desfecho de um processo histórico que deu errado. Esse país só foi possível, em primeiro lugar, por causa do delicado equilíbrio de poder que se seguiu à II Guerra Mundial e, em segundo, por causa do que eu definiria como uma espécie de curto-circuito cultural – o florescimento de uma concepção de vida que se mostrou problemática por ter perdido sua conexão com o real, a partir do momento em que a afirmação do ideal utópico tornou-se mais importante do que a sóbria avaliação de seus resultados face aos fatos. Repito: admitir isso não exime ninguém de suas responsabilidades, porém joga uma nova luz sobre as motivações que podem ter levado tantas pessoas a enveredar por esse caminho manchado de vermelho. Aconteceu com elas não porque elas fossem más (o que talvez seja o caso apenas em um ou outro exemplo de criminalidade política intencional e patológica), mas porque aquele contexto histórico favorecia esse tipo de conduta em pessoas normais.
 Uma elite política oportunista não precisa se dar a todo o trabalho de fundar um novo Estado, reformular a economia, elaborar uma ideologia confusa e montar um terrível aparato repressor para alcançar uma situação favorável para si própria. A interpretação de George Orwell no seu clássico 1984 é a de que a elite dos países comunistas tornou-se o que se tornou porque foi seduzida pela noção de poder absoluto. O idealismo original do movimento teria sido deturpado a partir do instante em que os militantes perceberam que poderiam se aproveitar do novo status quo para galgar uma posição de proeminência política inabalável.
Há muita verdade na interpretação de Orwell, mas ela, talvez por razões pedagógicas, simplifique um pouco o problema. Não está claro para mim se a elite dos países socialistas teria a capacidade de intencionalmente criar uma mentira tão fabulosa e que pudesse ser tão habilmente encenada ao longo de tanto tempo apenas para favorecer sua própria situação. Não sei sequer se se pode dizer que uma elite política que assume o custo de governar um país comunista está, comparativamente, em posição melhor do que estaria se permitisse uma reforma gradual do sistema (à moda chinesa). Imaginar capacidades tão prodigiosas de manipulação midiática num adversário que se odeia talvez não passe de uma forma de projeção psicológica.   
               Não duvido que um ou outro líder revolucionário fosse, realmente, uma pessoa má, com características comportamentais de um psicopata. Nenhum movimento político radical consegue se afirmar sem esse tipo de militante capaz de ultrapassar a fronteira das proibições éticas e de impor violência em nome do sucesso da causa almejada. Também não duvido da existência dos oportunistas: eles existem em todo sistema político, e querem apenas aproveitar as regras do jogo vigentes para se dar bem. Porém não sou capaz de acreditar que um movimento político possa sobreviver por mais de meio século sustentando-se apenas numa capacidade de imposição do terror, nascida do desejo de habilidosíssimos planejadores sociais de criar um mundo no qual eles reinem supremos. As pessoas são idiotas e covardes, mas não tanto. Os políticos são egoístas e calculistas, mas não tanto.   
               Na minha percepção, o comunismo – como talvez seja o caso das demais ideologias seculares nascidas da Revolução Francesa – representa uma patologia cultural, no sentido de que ela é a expressão de uma visão de mundo que perdeu sua capacidade de se reportar às evidências da realidade. Ele é uma projeção na história de uma esperança transcendental – a anulação das contradições terrenas, e a fundação de um novo reino onde a humanidade deixará para trás suas imperfeições. É aquilo que alguns pensadores católicos já convencionaram chamar de "imanentização do escaton" (expressão deselegante, mas que expressa não pouca verdade). A perda de conexão com o mundo real acontece porque, em nome da aspiração suprema da igualdade econômica, a ideologia aceita o pressuposto intelectual não demonstrado de que é possível a criação de um mundo sem conflitos. Parece-me claro que essa é uma extrapolação histórica de uma ideia de caráter religioso – nascida especificamente no contexto intelectual do cristianismo, que como religião apocalíptica que é, supõe não apenas que a história humana segue uma direção, mas também que essa história irá, um dia, acabar e, com esse fim, será revelado seu significado oculto.
               Não acho que este seja o espaço para desenvolver interpretações sobre as escatologias seculares que tanto assombraram a história humana nos dois últimos séculos, porém preciso aqui registrar que estou profundamente convencido de que a ideologia da Coreia do Norte é uma manifestação de uma cultura política patológica que faz com que pessoas normais – pessoas inclusive com notáveis virtudes – possam cometer verdadeiros crimes contra outros seres humanos. É a expressão da banalidade do mal, dissecada por Hannah Arendt ao estudar o fascismo alemão. Os colaboradores dos regimes totalitários fazem o que fazem não porque sejam todos maus, mas porque o contexto cultural em que vivem favorece um tipo de comportamento em que a imposição de sofrimentos a outras pessoas é não apenas aceitável, mas em alguns casos até mesmo obrigatório.
               Essa compreensão é reveladora porque ela nos leva a suspeitar que talvez nós mesmos – que nos consideramos pessoas sensatas e eticamente comprometidas – talvez pudéssemos nos comportar de maneira semelhante se tivéssemos nascido num contexto cultural parecido. E quem de nós seria presunçoso a ponto de julgar, de forma peremptória, que nós mesmos nos comportaríamos de forma diferente se estivéssemos num contexto parecido? Podemos até nos imaginarmos corajosos, quando estamos longe de constrangimentos como os que se aplicam à vida deles. É fácil demais julgar, no conforto de nossa mediocridade.
               Eu diria que essa foi a intuição fundamental que tive nesse misterioso país. O regime norte-coreano, embora tenha engendrado o que nos parecem monstros, talvez seja, na verdade, um dos mais consumados e duradouros experimentos utópicos de que se tem notícia na história humana. Não tenho dúvida de que se pedíssemos aos norte-coreanos que definissem o país em que vivem, muitos deles responderiam com sincera devoção – e isso ainda que tivessem plena liberdade de resposta – que fazem parte de um país muito especial, uma vez que estão sinceramente convencidos de que a experiência socialista é a concretização da utopia e, portanto, a realização do fim supremo da história humana. Percebe-se esse espírito inclusive na maneira bem-disposta com que muitos coreanos parecem participar da cansativa vivência coletiva a que lhes constrange o regime político de seu país.
               Se as coisas são, assim, tão rosadas, por que, então, impedir à população local o acesso a informações vindas de outros países? Por que o receio de permitir que os norte-coreanos saibam como é a vida em outros lugares? As elites políticas, no fim das contas, realmente precisam manipular o imaginário e as percepções das pessoas, mas aqui eu discordo profundamente de George Orwell no sentido de que não acho que elas façam isso por uma sede demoníaca de poder absoluto. Mesmo que fossem bem-intencionadas, e mesmo que sinceramente estivessem comprometidas com a concretização do ideal comunista, as elites de um país socialista forçosamente incorrem neste pecado por uma singela razão: a utopia não é alcançável. A história humana é eterno devir, eterna transformação, e toda tentativa de suprimir o conflito e a mudança apenas cria um recalque cultural: a permanente e doentia necessidade de a todo momento negar o mundo real e afirmar – contra todas as evidências em contrário – o advento do sonho.  
               Nesse sentido a Coreia do Norte talvez realmente seja um inferno cultural, porém um inferno criado não por demônios, mas por pessoas comuns e idealistas que um dia sonharam com um mundo menos injusto e aceitaram como verdadeira uma tresloucada fé transmitida por profetas eslavos e anunciada por um messias alemão do século XIX. Às pessoas que vivem nesse inferno nós só podemos oferecer nossa solidariedade, pois elas são vítimas de suas próprias excelentes intenções, bem como de sua tocante credulidade política.
Os norte-coreanos são muito mais parecidos conosco do que imaginamos, e o que os diferencia de nós talvez não seja sua propensão ao delírio, mas sim uma prodigiosa capacidade de levar às últimas consequências um sonho com o qual muita gente em nosso mundo ainda flerta. E não sejamos tolos a ponto de pensarmos que nós mesmos estamos livres dos salvacionismos seculares: apenas possuímos um outro enfoque (e, inspirados pela ideia de progresso, alegremente destruímos nossas perspectivas de sobrevivência, levianamente supondo que criar novas modalidades de consumo irá resolver nossos problemas futuros).
Acho realmente fabuloso ter percebido que, enquanto toda a vida pública do país está afundada num delírio coletivo, a realidade, o concreto, o vir-a-ser se afirmam de forma intacta e plena justo na dimensão doméstica do banal – nos poucos espaços onde o planejamento social não pôde se imiscuir. E que reconfortante saber que os seres humanos preservam suas pequenas e tacanhas aspirações de comer bem, viver com conforto e se relacionar com um belo exemplar do gênero oposto, mesmo nos mais adversos cenários, e mesmo quando se consuma politicamente o apocalipse. Que belo antídoto contra o delírio é a banalidade!
               Foi eu vi com meus próprios olhos. Depois de meio século de um regime autoritário, depois da guerra, depois da fome, os habitantes da última utopia stalinista viva ainda brincam com seus filhos no parque, fazem piquenique à beira do rio e jogam vôlei com os amigos. Claro que não são todos os coreanos que efetivamente têm a liberdade de se ocupar tão agradavelmente, mas, por mais duro que sejam as condições presentes, não posso deixar de me sentir otimista quando penso que esses desejos ainda possam estar vivos nos corações de tantos. George Orwell, apesar de suas intuições geniais, talvez tenha errado nesse ponto: os líderes não podem ter controle absoluto. Os totalitarismos políticos de nossa era podem aniquilar, com seu terrível maquinário, toda resistência política e todo livre pensamento. Mas eles não podem substituir de forma definitiva as satisfações e tranquilidades que só podem ser encontradas no espaço doméstico.
               Bendita seja a realidade, e bendito seja o povo coreano. Que o futuro traga melhores dias para suas crianças. 

A marcha dos socialistas rumo ao futuro.