O Grande Líder é grande mesmo. |
Eduardo Siebra, em
24/09/2014 (ano 103 do Calendário Juchê)
Observações preliminares:
1- Todos os pontos de vista apresentados neste
artigo refletem unicamente a opinião do autor. Nenhuma das afirmações,
portanto, pode ou deve ser tomada como sendo representativa de posições
oficiais. Quem quer que não consiga compreender essa sutileza sofre de
grave dissonância cognitiva e a estes – sejam eles blogueiros ou jornalistas
mal-intencionados – eu recomendo fortemente o procedimento da lobotomia.
2- Uma versão editada deste texto foi publicada no blog Jovens Diplomatas. A versão que ora publico é a versão completa, com argumentos que não constam no texto anteriormente publicado.
Coloquemos da
seguinte forma: se eu tivesse chegado à Coreia do Norte sem jamais ter ouvido
algo a seu respeito, certamente teria saído de lá com uma impressão muito
negativa. Porém, como desde que me entendo por gente escuto coisas horrorosas
sobre o país, seus governantes e seu povo, tenho que admitir que encontrei em
Pyongyang algo muito diferente do que esperava encontrar.
Decidi ir para lá
porque, infelizmente, o Brasil ainda não possui embaixada em Marte. Algumas
pessoas entram na diplomacia porque querem ter uma vida boa e morar perto de um
lugar onde possam ter acesso fácil a bons croissants e queijos fedorentos. Eu,
como venho de uma cidade com tão alto nível civilizatório como o Crato – onde
se encontra grande provisão de todas as comodidades mundanas e transcendentais
– escolhi essa profissão não pelos brioches, mas por desejar viver uma
experiência de alteridade.
Quis ir à Coreia do
Norte, portanto, por supor que lá eu encontraria uma realidade radicalmente
diferente de tudo a que eu estava acostumado. Esperava encontrar alienígenas,
ou pelo menos os habitantes robóticos de uma distopia orwelliana. Claro, não
sou desumano a ponto de ter me tornado um turista do horror: o que me motivava
não era uma curiosidade mórbida pelo alardeado sofrimento do povo coreano, mas
sim o desejo semi-antropológico de compreender a insistência desse país em
fazer tudo do jeito que faz.
Posso aqui confessar
perante as testemunhas do plano material e astral: o que mais me surpreendeu na
minha curta passagem pelo Reino Ermitão foi a banalidade da vida cotidiana que
testemunhei nas ruas. Sabem aquelas fotos mostrando largas avenidas cinzentas,
sem nenhum carro ou pedestre, e apenas uma intimidadora – mas charmosa –
guardinha de trânsito severamente observando o tempo passar? É tudo mentira!
Pyongyang é uma cidade cheia de vida – ou, o que dá no mesmo, cheia de gente! E
as policiais de trânsito gatinhas trabalham pra caramba, sem jamais perder a
pose!
É claro, as crianças
estão todas com os uniformes da União dos Pioneiros Socialistas. Os homens
estão indo trabalhar vestidos em ternos Mao Zedong. As mulheres desfilam em
comportados tailleurs – ou naquelas horrorosas
roupas tradicionais coreanas (que cometem o imperdoável pecado de esconder os
corpos de algumas das mais belas mulheres da Ásia do Leste). Mas tirando isso,
e tirando os carros de boi, os veículos militares saídos diretamente de um
filme de época, e a enorme profusão de soldados socialistas – todos prontos a
causar as mais terríveis dores de cabeça a eventuais invasores imperialistas
que cometessem o erro de tentar ocupar esse bravo e teimoso país – a vida
parece seguir normalmente, como em qualquer outro lugar.
Que a verdade seja
dita: em Pyongyang não há toque de recolher. Tudo bem, a noite é um breu, porém
isso não impede que verdadeira multidão caminhe pelas ruas – totalmente indiferentes
ao risco de serem atropelados pelos motoristas que quase não os conseguem
enxergar naquele escuro. Também não vi soldados apontando suas metralhadoras
para uma população assustada: vi muitas crianças em idade escolar (algumas com
quatro, cinco anos) caminhando sozinhas, sem o menor receio de serem vítimas de
qualquer forma de violência. Vi grupos de jovens universitários andando
animadamente, conversando sobre assuntos que com toda certeza eram da mais
absoluta frivolidade. E vi gente dando risada com alguma piada que alguém havia
contado.
Não quero, aqui, dar
uma de estrangeiro desavisado e ingênuo, e minimizar o peso do que é a vida num
Estado como a Coreia do Norte. Talvez mesmo que tentasse eu não pudesse
compreender a pressão psicológica que sofrem pessoas que são submetidas, desde
a infância, a uma mobilização completa dos sentimentos e do imaginário
político. Também não posso dizer que eu tenha conhecido a Coreia do Norte real,
já que minha vivência esteve limitada à capital (onde eu podia me locomover
livremente, desacompanhado por guias coreanos) e alguns pontos turísticos no
interior. Tenho plena consciência de que permaneci nas partes mais simpáticas
do país, e também de que não me foi permitido ir muito fundo na compreensão da
vida do cidadão comum.
Porém, posso
garantir que o pouco que eu vi não foi uma encenação. Os velhinhos não estavam
sendo pagos pelo governo para brincar com seus netinhos nas ruas – e, assim,
transmitir uma boa impressão aos eventuais turistas que passassem por ali. Os
jovens realmente ocupavam os espaços públicos de lazer, e acho pouco razoável
dizer que as partidas de vôlei que eu vi eram apenas mais uma sessão de
doutrinação socialista por meio da cultura física. O que acontece é que os
norte-coreanos são pessoas como nós, e o mero fato de eles viverem num regime
que tenta, de todas as formas, desenvolver seu senso de fervor patriótico e sua
capacidade de heroísmo não os torna menos simpáticos à ideia de levarem uma
vida tranquila e de se divertirem. Talvez eles apenas não possam, como nós,
declarar abertamente essa sua inclinação.
São pessoas que vão
à escola, que fazem amigos, que namoram, que se preocupam com seus familiares,
exatamente como acontece em qualquer outro lugar do mundo. Agora, claro, desde
a pré-escola o norte-coreano é exposto, de todas as formas e por todos os
meios, à doutrinação da ideologia juchê. No feriado nacional, eles têm que
levar flores para a estátua de seus adorados líderes, e todo sábado eles
participam de sessões de “estudos políticos”. Muito frequentemente o coreano
tem de participar de mobilizações coletivas, tais como cerimônias patrióticas,
deslocamentos ao interior para ajudar os camponeses durante a época da colheita
de arroz, ou, pior de tudo, excruciantes sessões coletivas de cortar a grama
dos espaços públicos usando uma mera tesourinha. Certamente é um povo que
trabalha duro, e que está submetido, em média, a esforços e privações físicas
muito mais severas do que as que estamos acostumados a ver nos países ditos
liberais (e vamos, aqui, em deferência ao bom gosto pequeno-burguês, deixar de
lado a complexa mas pertinente discussão sobre a condição dos miseráveis nos
países ditos “livres”) . Porém, no tempo que lhes resta, os coreanos estão
fazendo coisas banais: passeando com seus bebês pendurados nas costas, tomando
soju com os colegas de trabalho, comendo kimchi e contando piadas. Talvez a
verdade seja que não dá para simplesmente abolir a dimensão doméstica da vida e
impor um estado permanente de fervor ideológico – ainda que seja exatamente
isso o que desejam exigir de seus camaradas alguns dos líderes do país.
Esse deslumbramento
que experimentei em Pyongyang acontece com diversos estrangeiros que chegam
pela primeira vez à cidade. Ele tem até um apelido na comunidade de expatriados:
Pyongyang Honeymoon. Há vários
fatores que o explicam.
1: A cidade é bonita. Como ela foi arrasada
pelos bombardeios americanos durante a Guerra da Coreia, os arquitetos
socialistas puderam criar sua cidade-modelo praticamente do zero. Algumas pessoas
chegam a dizer que Pyongyang é a única capital 100% socialista do planeta. E
embora se possa questionar o bom gosto de alguns de seus monumentos, não há
como não admitir que o desenho da capital é impressionante. Seu traçado evoca a
todo instante um ideal de grandeza e de heroísmo, mas sem sobrecarregar os
espaços públicos com a parafernália socialista (eu diria até que eles, a seu
modo, têm lá seu senso de sobriedade). As ruas são largas e arborizadas, há
várias praças nas margens dos rios que cortam a cidade e as opções de lazer
para a população não são poucas (incluindo parques de diversão, espetáculos
circenses, parques aquáticos, boliches, etc). Especialmente deslumbrante é a
visão da Torre Juchê iluminada à noite – uma enorme tocha vermelha tremeluzindo
em meio às trevas da cidade, eternamente inspirando o povo coreano com o ideal
de autossuficiência (vi alguns jovens que iam ao monumento à noite para
estudar, não sei se para absorver emanações inspiradoras, não sei se porque a
torre é um dos únicos locais permanentemente iluminados da capital coreana,
onde os apagões são uma realidade diária).
2: Como já observei, os estrangeiros que chegam
a Pyongyang costumam esperar algo muito pior. A quebra de expectativa tem, pelo
menos nos primeiros meses, um efeito favorável na opinião do visitante a
respeito do lugar. Isso costuma mudar à medida que o tempo vai passando, e à
medida que o estrangeiro vai sentindo com mais intensidade os efeitos do severo
isolamento a que ele está condenado quando vive na cidade (apenas alguns
coreanos credenciados têm plena liberdade de conversar com pessoas de fora, e,
por causa da paranoia do regime, mesmo estes não ousariam desenvolver laços
muito estreitos com alguém que, em última instância, poderia se mostrar um espião
a serviço dos imperialistas ou, pior ainda, um repórter da Veja).
3: Pyongyang é uma cidade que claramente está
em transformação. Quando comparada ao que era há quatro anos, a capital parece,
segundo o relato dos estrangeiros que a conheceram no passado e no presente,
uma cidade muito mais agradável, e com muito mais opções de entretenimento.
Embora seja cedo para julgar o significado da chegada do novo líder ao poder, o
impacto dessa mudança é visível nas ruas. Há muito mais carros circulando pelas
avenidas hoje do que havia a apenas alguns anos atrás. As pessoas parecem se
vestir com roupas mais coloridas e casuais (muitas delas fabricadas na China) e
a quantidade de restaurantes, supermercados e outros empreendimentos privados é
cada vez maior. Para o observador de fora, é excitante ver essas mudanças
acontecendo, uma vez que elas evocam a possibilidade de um futuro melhor para o
país e seus habitantes. A classe média coreana está crescendo, como uma erva
daninha nos jardins do socialismo.
4: O povo coreano é
simpático. Não esqueçamos que os do norte são os mesmos que os do sul – tão
amados por sua meiguice quase cafona e sua inclinação ao miguxo way of life. As crianças
norte-coreanas, em especial, são umas gracinhas. Elas ficam boquiabertas quando
avistam nas ruas essas criaturas de cabelos coloridos, olhos redondos e
terríveis barbas e narizes! As mais audazes se aproximam e arriscam, com um
sotaque extremamente carregado: “– Helooooooo!” Os adultos, também, demonstram
muita curiosidade, e fica muito claro pela sua expressão que, se eles pudessem,
seriam muito mais calorosos e francos com essas aberrações vindas de fora.
Muitos membros da comunidade de expatriados em Pyongyang desenvolvem, ao longo
do tempo, intensa antipatia pelos cidadãos do país, uma vez que é muito difícil
estabelecer qualquer relação mais próxima e sincera com um habitante local.
Porém esse preconceito desconsidera a delicada situação em que vivem os
norte-coreanos: como esperar um comportamento franco de alguém que está sendo
vigiado pelos seus pares? Sabe-se que a polícia norte-coreana conta com a ajuda
de verdadeiro exército de informantes civis, que não hesitariam em delatar
comportamentos suspeitos de um potencial traidor. (E não nos precipitemos em
julgar o povo coreano como covarde pela sua disposição em denunciar vizinhos
reacionários: eles são desde cedo educados a isso, e em sua mentalidade,
identificar um potencial inimigo do regime é um dever cívico, mesmo que esse
dever possa significar a desgraça de seu vizinho…)
Também é preciso
notar que a Pyongyang honeymoon é fruto de uma
experiência restrita à capital. A Coreia do Norte tem pouco mais de 20 milhões
de habitantes. Em Pyongyang vivem umas 3 milhões de pessoas – incluindo aí
praticamente toda a elite política do país. É uma cidade-vitrine, que não
reflete as reais condições de vida no campo. Estima-se que um grande percentual
das crianças norte-coreanas, em especial aquelas que vivem nas zonas rurais,
ainda estejam subnutridas. As condições de saúde e de moradia nas regiões mais
ermas são incomparavelmente piores. Ouvi relatos de estrangeiros que tiveram
oportunidade de ir ao interior do país – para acompanhar a implementação dos
programas de ajuda humanitária – sobre pessoas que eram obrigadas a trabalhar
de sol a sol, ao ensurdecedor barulho de alto-falantes que repetiam
incessantemente mensagens de doutrinação política. Não quero nem imaginar o que
aconteça no nordeste do país – na terrivelmente gélida região onde se acredita
que existam as prisões políticas. A Coreia do Norte não é um passeio para os
seus cidadãos, e posso garantir que eles são as principais vítimas do sistema
que ainda vigora no país.
Ainda assim, acho
que essa inesperada simpatia que senti por Pyongyang (e que muitos outros
estrangeiros também sentem) é significativa. Por um lado, ela mostra que o
relato comumente transmitido sobre a Coreia do Norte pelos meios de comunicação
ocidentais é, se não mal-intencionado, pelo menos tendencioso ou desinformado.
As condições certamente não se comparam às do sul da península, mas a cidade
nem de longe se assemelha ao inferno pintado pelos adversários do regime. Por
outro lado, entender que os norte-coreanos são pessoas normais como nós torna
inevitável uma importante e esclarecedora questão: por que, então, eles
continuam seguindo esse caminho de isolamento e confrontação, que os leva a
serem um país com uma das piores reputações do mundo?
Praticamente toda
análise a respeito da Coreia do Norte produzida no Ocidente – com a notável
exceção da de alguns acadêmicos que já foram ao país – parte do pressuposto nem
sempre anunciado de que o Estado coreano tem o comportamento de um psicopata,
ou seja, de uma pessoa sem a menor consideração pelo sofrimento de outros seres
humanos – incluindo aí sua própria população. As elites do país seriam, segundo
essas análises, uma casta de maquiavélicos diabólicos, dispostos a sacrificar o
sangue de seus compatriotas, desde que eles mesmos possam usufruir das regalias
materiais a que apenas eles têm acesso.
Esse modelo
interpretativo do comportamento norte-coreano cumpre uma função psicológica no
nosso relato do que é a Sociedade Internacional. Existe um mundo no qual todos
gostaríamos de viver – um mundo sem guerras. Há países que se esforçam para
criar esse mundo – as democracias – e há países que são um obstáculo à sua
criação – aquilo que os americanos costumam chamar de Eixo do Mal. Tendo em
vista o bem maior que é a realização do tão almejado sonho da paz, torna-se não
apenas justificável, mas até mesmo necessário o uso da força contra os Estados
que são considerados vilões. Se essa intervenção provocará sofrimentos à
população civil, esse é um sacrifício que se justificaria à luz do bem maior
futuramente alcançável (a própria libertação da população subjugada).
A Coreia do Norte,
portanto, ocupa no imaginário ocidental o papel do antagonista. Ela é o oposto
da imagem que o Ocidente usa para se definir, ou seja, por negação, o país
ajuda a delinear a identidade ocidental. Projeta-se nele, portanto, todos os
pecados aos quais não gostaríamos de estar associados: manipulação midiática
das massas, truculência, militarismo inconsequente, etc.
Será que é tão
simples? Ainda que possa haver alguma verdade nesse relato, não seria o caso de
nos perguntarmos o que leva alguém a se tornar um "vilão"?
O observador russo
Andrei Lankov já demonstrou o quanto há de falso na visão estereotipada que as
pessoas costumam reproduzir sobre a Coreia do Norte, e mesmo sobre seus
líderes. Remeto o leitor curioso ao esclarecedor livro "The Real North
Korea", no qual Lankov observa que o comportamento das elites
norte-coreanas ao longo das últimas décadas não é nem de longe inconsequente,
mas demonstra uma capacidade muito racional de avaliar quais são as reais
chances de sobrevivência do regime num mundo que simplesmente não está disposto
a aceitar sua existência. Acho, todavia, que além do mero calculismo
geoestratégico, o comportamento das elites e do povo da Coreia do Norte
representa um dos casos mais emblemáticos de um fenômeno político típico do
mundo posterior à Revolução Francesa, e até hoje pouco compreendido.
Muitos são os
norte-coreanos que ficam sinceramente chocados quando descobrem que são vistos
no exterior como uma espécie de criminosos. Eles mesmos se consideram um povo
heroico – que lutou bravamente contra a dominação estrangeira e que até hoje
está tentando afirmar seu espaço de sobrevivência num meio internacional
incrivelmente hostil. Não esqueçamos que quando o país foi criado, o comunismo
ainda parecia uma boa ideia – em especial para um povo que havia acabado de
sair de um regime feudal, seguido pela truculenta ocupação japonesa. Os
guerrilheiros coreanos que primeiro aderiram ao movimento certamente estavam
inspirados por nobres ideais. O fervor com que eles abraçaram a causa
socialista se explica pelo fato de eles realmente acreditarem que estavam
cumprindo uma missão patriótica.
A história
subsequente é bem conhecida. A realidade não se conformou bem ao sonho utópico
de uma sociedade sem classes, e os que começaram sendo os bem-intencionados
guias da marcha rumo à igualdade acabaram por se tornar uma nova casta
dominante que se viu subitamente diante da terrível contradição de, por um
lado, não serem capazes de realizar as promessas de prosperidade antecipadas
por sua ideologia e, por outro, de não poderem reverter o processo
revolucionário em nome dessa almejada prosperidade, sob pena de serem eles
mesmos aniquilados durante a queda do regime vigente. Eles se tornaram, num
certo sentido, reféns de um monstro que eles mesmos criaram – e que em mais de
uma ocasião gerou a desgraça dos próprios membros dessa elite política (nos
assustadores expurgos tão comuns à prática stalinista). E a partir de então
eles foram para sempre amaldiçoados pela necessidade de ter que perseguir
duramente todos os que tivessem a audácia de cometer a suprema transgressão:
dizer a verdade, admitir que o paraíso prometido talvez não fosse assim tão
bom…
"O Socialismo também quer lascar você!" |
Longe de mim
justificar os atos que já foram praticados em nome da estabilidade do regime ou
da perpetuação do ideal revolucionário. Que cada violência cometida contra
outro ser humano, independente das motivações políticas subjacentes, esteja
para sempre associada não apenas à memória do sistema que o provocou, mas
também à de seu autor, da pessoa que individualmente foi o veículo desse mal.
Porém acho importante – inclusive como forma de auto-policiamento – tentar
compreender que tipo de contexto histórico pode criar uma situação em que inofensivos
burocratas se tornam cúmplices de violências legitimadas.
Mais do que uma
criação de demônios sanguinários, a Coreia do Norte talvez seja o trágico
desfecho de um processo histórico que deu errado. Esse país só foi possível, em
primeiro lugar, por causa do delicado equilíbrio de poder que se seguiu à II
Guerra Mundial e, em segundo, por causa do que eu definiria como uma espécie de
curto-circuito cultural – o florescimento de uma concepção de vida que se
mostrou problemática por ter perdido sua conexão com o real, a partir do
momento em que a afirmação do ideal utópico tornou-se mais importante do que a
sóbria avaliação de seus resultados face aos fatos. Repito: admitir isso não
exime ninguém de suas responsabilidades, porém joga uma nova luz sobre as
motivações que podem ter levado tantas pessoas a enveredar por esse caminho
manchado de vermelho. Aconteceu com elas não porque elas fossem más (o que
talvez seja o caso apenas em um ou outro exemplo de criminalidade política
intencional e patológica), mas porque aquele contexto histórico favorecia esse
tipo de conduta em pessoas normais.
Uma
elite política oportunista não precisa se dar a todo o trabalho de fundar um novo
Estado, reformular a economia, elaborar uma ideologia confusa e montar um
terrível aparato repressor para alcançar uma situação favorável para si própria.
A interpretação de George Orwell no seu clássico 1984 é a de que a elite dos
países comunistas tornou-se o que se tornou porque foi seduzida pela noção de
poder absoluto. O idealismo original do movimento teria sido deturpado a partir
do instante em que os militantes perceberam que poderiam se aproveitar do novo status quo para galgar uma posição de
proeminência política inabalável.
Há muita verdade na interpretação de Orwell,
mas ela, talvez por razões pedagógicas, simplifique um pouco o problema. Não
está claro para mim se a elite dos países socialistas teria a capacidade de intencionalmente criar uma mentira tão
fabulosa e que pudesse ser tão habilmente encenada ao longo de tanto tempo
apenas para favorecer sua própria situação. Não sei sequer se se pode dizer que
uma elite política que assume o custo de governar um país comunista está,
comparativamente, em posição melhor do que estaria se permitisse uma reforma
gradual do sistema (à moda chinesa). Imaginar capacidades tão prodigiosas de
manipulação midiática num adversário que se odeia talvez não passe de uma forma
de projeção psicológica.
Não duvido que um ou
outro líder revolucionário fosse, realmente, uma pessoa má, com características
comportamentais de um psicopata. Nenhum movimento político radical consegue se
afirmar sem esse tipo de militante capaz de ultrapassar a fronteira das
proibições éticas e de impor violência em nome do sucesso da causa almejada.
Também não duvido da existência dos oportunistas: eles existem em todo sistema
político, e querem apenas aproveitar as regras do jogo vigentes para se dar
bem. Porém não sou capaz de acreditar que um movimento político possa
sobreviver por mais de meio século sustentando-se apenas numa capacidade de
imposição do terror, nascida do desejo de habilidosíssimos planejadores sociais
de criar um mundo no qual eles reinem supremos. As pessoas são idiotas e
covardes, mas não tanto. Os políticos são egoístas e calculistas, mas não
tanto.
Na minha percepção,
o comunismo – como talvez seja o caso das demais ideologias seculares nascidas
da Revolução Francesa – representa uma patologia cultural, no sentido de que
ela é a expressão de uma visão de mundo que perdeu sua capacidade de se
reportar às evidências da realidade. Ele é uma projeção na história de uma
esperança transcendental – a anulação das contradições terrenas, e a fundação
de um novo reino onde a humanidade deixará para trás suas imperfeições. É
aquilo que alguns pensadores católicos já convencionaram chamar de
"imanentização do escaton" (expressão deselegante, mas que expressa
não pouca verdade). A perda de conexão com o mundo real acontece porque, em nome
da aspiração suprema da igualdade econômica, a ideologia aceita o pressuposto
intelectual não demonstrado de que é possível a criação de um mundo sem
conflitos. Parece-me claro que essa é uma extrapolação histórica de uma ideia
de caráter religioso – nascida especificamente no contexto intelectual do
cristianismo, que como religião apocalíptica que é, supõe não apenas que a
história humana segue uma direção, mas também que essa história irá, um dia,
acabar e, com esse fim, será revelado seu significado oculto.
Não acho que este
seja o espaço para desenvolver interpretações sobre as escatologias seculares
que tanto assombraram a história humana nos dois últimos séculos, porém preciso
aqui registrar que estou profundamente convencido de que a ideologia da Coreia
do Norte é uma manifestação de uma cultura política patológica que faz com que
pessoas normais – pessoas inclusive com notáveis virtudes – possam cometer
verdadeiros crimes contra outros seres humanos. É a expressão da banalidade do
mal, dissecada por Hannah Arendt ao estudar o fascismo alemão. Os colaboradores
dos regimes totalitários fazem o que fazem não porque sejam todos maus, mas
porque o contexto cultural em que vivem favorece um tipo de comportamento em
que a imposição de sofrimentos a outras pessoas é não apenas aceitável, mas em
alguns casos até mesmo obrigatório.
Essa compreensão é
reveladora porque ela nos leva a suspeitar que talvez nós mesmos – que nos
consideramos pessoas sensatas e eticamente comprometidas – talvez pudéssemos
nos comportar de maneira semelhante se tivéssemos nascido num contexto cultural
parecido. E quem de nós seria presunçoso a ponto de julgar, de forma
peremptória, que nós mesmos nos comportaríamos de forma diferente se
estivéssemos num contexto parecido? Podemos até nos imaginarmos corajosos,
quando estamos longe de constrangimentos como os que se aplicam à vida deles. É fácil demais julgar, no conforto de nossa mediocridade.
Eu diria que essa foi
a intuição fundamental que tive nesse misterioso país. O regime norte-coreano, embora
tenha engendrado o que nos parecem monstros, talvez seja, na verdade, um dos mais
consumados e duradouros experimentos utópicos de que se tem notícia na história
humana. Não tenho dúvida de que se pedíssemos aos norte-coreanos que definissem
o país em que vivem, muitos deles responderiam com sincera devoção – e isso
ainda que tivessem plena liberdade de resposta – que fazem parte de um país
muito especial, uma vez que estão sinceramente convencidos de que a experiência
socialista é a concretização da utopia e, portanto, a realização do fim supremo
da história humana. Percebe-se esse espírito inclusive na maneira bem-disposta
com que muitos coreanos parecem participar da cansativa vivência coletiva a que
lhes constrange o regime político de seu país.
Se as coisas são,
assim, tão rosadas, por que, então, impedir à população local o acesso a
informações vindas de outros países? Por que o receio de permitir que os
norte-coreanos saibam como é a vida em outros lugares? As elites políticas, no
fim das contas, realmente precisam manipular o imaginário e as percepções das
pessoas, mas aqui eu discordo profundamente de George Orwell no sentido de que
não acho que elas façam isso por uma sede demoníaca de poder absoluto. Mesmo
que fossem bem-intencionadas, e mesmo que sinceramente estivessem comprometidas
com a concretização do ideal comunista, as elites de um país socialista
forçosamente incorrem neste pecado por uma singela razão: a utopia não é
alcançável. A história humana é eterno devir, eterna transformação, e toda
tentativa de suprimir o conflito e a mudança apenas cria um recalque cultural:
a permanente e doentia necessidade de a todo momento negar o mundo real e
afirmar – contra todas as evidências em contrário – o advento do sonho.
Nesse sentido a
Coreia do Norte talvez realmente seja um inferno cultural, porém um inferno
criado não por demônios, mas por pessoas comuns e idealistas que um dia
sonharam com um mundo menos injusto e aceitaram como verdadeira uma tresloucada
fé transmitida por profetas eslavos e anunciada por um messias alemão do século
XIX. Às pessoas que vivem nesse inferno nós só podemos oferecer nossa
solidariedade, pois elas são vítimas de suas próprias excelentes intenções, bem
como de sua tocante credulidade política.
Os norte-coreanos são muito mais parecidos
conosco do que imaginamos, e o que os diferencia de nós talvez não seja sua
propensão ao delírio, mas sim uma prodigiosa capacidade de levar às últimas
consequências um sonho com o qual muita gente em nosso mundo ainda flerta. E
não sejamos tolos a ponto de pensarmos que nós mesmos estamos livres dos
salvacionismos seculares: apenas possuímos um outro enfoque (e, inspirados pela
ideia de progresso, alegremente destruímos nossas perspectivas de sobrevivência,
levianamente supondo que criar novas modalidades de consumo irá resolver nossos
problemas futuros).
Acho realmente fabuloso ter percebido que,
enquanto toda a vida pública do país está afundada num delírio coletivo, a
realidade, o concreto, o vir-a-ser se afirmam de forma intacta e plena justo na
dimensão doméstica do banal – nos poucos espaços onde o planejamento social não
pôde se imiscuir. E que reconfortante saber que os seres humanos preservam suas
pequenas e tacanhas aspirações de comer bem, viver com conforto e se relacionar
com um belo exemplar do gênero oposto, mesmo nos mais adversos cenários, e
mesmo quando se consuma politicamente o apocalipse. Que belo antídoto contra o
delírio é a banalidade!
Foi eu vi com meus
próprios olhos. Depois de meio século de um regime autoritário, depois da
guerra, depois da fome, os habitantes da última utopia stalinista viva ainda
brincam com seus filhos no parque, fazem piquenique à beira do rio e jogam
vôlei com os amigos. Claro que não são todos os coreanos que efetivamente têm a
liberdade de se ocupar tão agradavelmente, mas, por mais duro que sejam as
condições presentes, não posso deixar de me sentir otimista quando penso que
esses desejos ainda possam estar vivos nos corações de tantos. George Orwell,
apesar de suas intuições geniais, talvez tenha errado nesse ponto: os líderes
não podem ter controle absoluto. Os totalitarismos políticos de nossa era podem
aniquilar, com seu terrível maquinário, toda resistência política e todo livre
pensamento. Mas eles não podem substituir de forma definitiva as satisfações e
tranquilidades que só podem ser encontradas no espaço doméstico.
Bendita seja a
realidade, e bendito seja o povo coreano. Que o futuro traga melhores dias para
suas crianças.
A marcha dos socialistas rumo ao futuro. |
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