domingo, 14 de dezembro de 2014

OS CONFINS - ATO 1 (Cenas 1 a 3)

Por Frederico Araújo


Após mais um longo período de secura criativa, emerjo enfim com uma inspiração que não reconheço ser minha. Agradeço ao meu amigo do peito Eduardo pela insistência com que me cobra um registro de minha temporada como cônsul na fronteira. Mal sabia eu como trazê-lo à pena, pensando até que o mais natural seria um ensaio acadêmico, penteado, virgulado, lambido, sobre o Visconde do Rio Branco ou coisa que o valha. Escrever um romance estava completamente fora de minha capacidade e envergadura intelectual. Uma epopéia poética? Nem se fala! Pois eis que, sem querer, brotou-me de um jorro, ao longo de um intenso fim de semana, uma peça de teatro intitulada OS CONFINS.

         
DRAMATIS PERSONAE:

Suzana de Jesus – diarista
Daniel – filho da diarista
Amiga – amiga de infância de Daniel
Dr Eduardo Wallenstein – jovem juiz
Dra Melissa Fausto – advogada, namorada de Eduardo
Dra Vanessa Maia – promotora, namorada de Eduardo
Chang Lu, o Diabo – chefão do tráfico
Dr Bruno Zambetta – advogado do tráfico
Encapuzado 1 – matador de aluguel
Encapuzado 2 – matador de aluguel
Carmen Duralex – companheira de cela de Suzana

figurantes:
secretária do juiz
capangas do tráfico
cantor de barzinho




Antes de começar a peça, enquanto os espectadores tomam seus assentos na plateia, o som do teatro deve tocar o primeiro movimento de LA CATEDRAL, de Agustín Barrios.

CENA 1


Cena de uma audiência judicial. Mesa em forma de T. Entram Dr. Eduardo, o juiz, com sua secretária e sentam-se revirando papéis. Entra Dra Vanessa, a promotora, e se cumprimentam, trocando olhares lascivamente.
EDUARDO – Bom dia, Dra Vanessa! (sorrindo galante)
VANESSA – Bom dia, Excelência! (retribuindo simpatia)
EDUARDO – Vossa Excelência está elegante hoje.
VANESSA – Obrigada! Gentileza sua.
EDUARDO – Bem, vamos começar então. Já que está presente o Ministério Público... Vou apregoar o réu, aliás, neste caso (consultando papéis), a ré. Senhora Suzana de Jesus! (em tom de pregoeiro).
Entra Suzana, de cabeça baixa. Pára um instante em frente ao juiz. Ele acena para que ela tome assento.
EDUARDO – O sobrenome da senhora... (ainda consultando papéis)
Retira-se a figurante que faz a secretária do juiz.
SUZANA – Sobrenome tem não, senhor (sentando-se). Meu nome é só este mesmo: Suzana de Jesus.
EDUARDO – Tudo bem, não é a primeira vez que vejo gente sem sobrenome aqui... A senhora está sendo acusada de tráfico de entorpecentes.
SUZANA – Sim, senhor.
EDUARDO – A senhora reconhece essa acusação?
SUZANA – Não, senhor.
EDUARDO – Mas me parece que a senhora confessou para o delegado que a droga era sua.
SUZANA – Sim, é verdade. Se o senhor me permite...
EDUARDO – Pois não.
SUZANA – Eu trabalho como diarista. Naquele dia, eu estava trabalhando normalmente na casa de uns libaneses, que eu limpo às terças e quintas. O meu celular tocou: era o meu filho, que estava preso na Ponte da Amizade. Chorava no telefone me dizendo: - Não fui eu, mãe. Não fui eu, mãe! Fiquei desesperada. Pedi licença ao patrão. Peguei um mototaxi e fui pra ponte.
EDUARDO – E aí?
SUZANA – Cheguei lá, tava ele sentado assim de lado numa sala. Dei logo um tapa nele pra ele aprender. O policial até gostou. Falei pro meu filho: - moleque, eu te falei pra tu não ir na história desse chinês maldito. Olha bem o que te aconteceu, Daniel! Meu filho só calado, doutor. O policial já foi pegando a mochila dele e levando pra perícia. Aquilo foi no dia do aniversário dele, o meu filho estava fazendo 18 anos.
VANESSA – (interrompendo) Excelência, ela assumiu a droga como se fosse dela... para o filho não ir pra cadeia.
EDUARDO – Como assim? Ela não estava presente no momento do flagrante! E o que disse a perícia?
SUZANA – Policial também tem filho, doutor. O senhor imagine: era o dia que o Daniel ia fazer 18 anos. Eu implorei pra escrivã que estava fazendo o B.O., pra ela trocar os nomes, pra eu ir presa no lugar dele.
EDUARDO – Sei... (pensativo) Um belo gesto de amor, minha senhora. E o Ministério Público como opina neste caso?
            VANESSA – Eu acho que podemos fazer uma transação (pausa). Apesar de juridicamente ter um flagrante contra a Senhora Suzana, o Ministério Público propõe uma delação premiada. Se a ré revelar à Justiça quem é o dono da droga...
            Suzana baixa a cabeça, com medo.
            EDUARDO – A senhora aceita a oferta do Ministério Público?
            Suzana fica calada, pensativa.
            VANESSA – Na verdade, Excelência, as investigações apontam que foi o próprio traficante quem mandou avisar a polícia sobre essa mula, pra despistar um carregamento muito maior. Isso é um golpe comum aqui na região.
            Suzana levanta a cabeça, decidida.
            SUZANA – Eu aceito, doutor. Se eu falar pro senhor quem é o dono da droga, eu vou sair da cadeia?
            EDUARDO – Depende. A senhora poderá ser absolvida ou receber uma pena menor, ficar menos tempo na cadeia... Depende da sua colaboração com a Justiça.
            SUZANA – O nome dele é impronunciável.
            EDUARDO – É árabe?
            SUZANA – Não. Na realidade, ele tem vários nomes. Lá no bairro todos chamam ele de muitas formas diferentes, porque o bicho não gosta de ser identificado.
            VANESSA – Mas a senhora pode declinar alguns desses nomes?
            SUZANA – Pra lá pra nós, a gente chama ele de O China. Mas também é conhecido como O Rei, O Cara, O Tal, O Pai da Mentira, O Jorge, O Humberto, O Padrinho, O Painho, O Osvaldo, O Capo, El Jefe, O Fernando, O Carioca.
            VANESSA – Desse jeito é difícil. A senhora não está ajudando nada... (impacientando-se)
            EDUARDO – (dirigindo-se à promotora) Mas, doutora, você sabe que é assim mesmo no submundo do crime. Os criminosos têm muitos vulgos.
            SUZANA – E ele tem mais nomes. É porque eu não me lembro de todos. Se eu pudesse ajudar...
            EDUARDO – Me diga uma coisa. Como foi que o seu filho conheceu esse traficante?
            SUZANA – Ah doutor... Foi lá no bairro mesmo. Eu trabalho o dia inteiro. O senhor sabe como é que é. O menino fica na rua, nem sempre eu posso vigiar por onde ele anda. São as más companhias.
            EDUARDO – Ele entrou no tráfico por necessidade?
            SUZANA – (ofendida) Necessidade o quê, doutor? Eu eduquei meu filho dando tudo de bom pra ele. Nunca deixei faltar nada, nem roupa de marca, relógio, celular novo. Eu dava dinheiro, ele ia com os amigos dele pro Paraguai comprar. Daniel sempre teve tudo. Paguei até colégio particular lá no bairro, doutor, o melhor que eu podia dar. Procurei dar o melhor pra ele, doutor. Passo o dia fora, trabalhando na casa dos outros.
            VANESSA – Onde a senhora mora?
            SUZANA – Na Vila C.
            EDUARDO – Então como foi que o Daniel entrou no tráfico?
            SUZANA – Ele sempre gostou de aventura. Nunca satisfeito, vive reclamando do que eu boto em casa pra comer. Por mais que a mãe dele tenta agradar... A vida da gente é assim mesmo... Aí um amigo dele perguntou se ele não queria conhecer o tal do Chan... Tchan... Chang... Eu não sei falar esses nomes complicados, doutor. É o Homem-Lá, o Bode Velho como eu chamo logo. E o meu Danielzinho passou a dizer que o Outro agora é que era o padinho dele. O senhor imagine! Eu que batizei o Daniel na Igreja, dei meu irmão pra ser padrinho, meu finado irmão, sou obrigada a escutar uma história dessa! (chora)
            EDUARDO – Se acalme, dona. Esse negócio de padrinho ele deve ter visto em algum filme.
           SUZANA – Não é não, senhor. Todo mundo lá no bairro diz que é afilhado do homem. É uma febre.
            VANESSA – E esse padrinho dava algum presente para o seu filho?
            SUZANA – Dava, sim senhora, alguma coisinha. Só que prometia mais do que dava.
EDUARDO – O que ele prometia para o seu filho?
SUZANA – (gesticulando) Chamava o meu filho lá na mansão dele, mostrava todas aquelas coisas, as correntes de ouro, os carrões, mulher da rua na piscina; fazia churrasco o fim de semana inteiro com artista de samba, bebida... E dizia assim pro Daniel: “Olha, eu vou te dar tudo isso se você for fiel a mim...”.
            EDUARDO – A promessa de subir na vida sem esforço.
            SUZANA – O Animal seduzia o meu filho dizendo assim: “Você é estudado, Daniel, ainda vai se tornar o meu braço direito na contabilidade”.
            VANESSA – Que cachorro!
            SUZANA – Então, doutor? Vou poder sair da cadeia?
            EDUARDO – Depende, senhora. Isso vai depender do desenrolar do processo. (dirigindo-se à promotora) Bem, por hoje eu estou satisfeito. (voltando-se para a ré) A senhora fale com o seu advogado ali na saída, que ele vai lhe informar a data da próxima audiência. Declaro esta sessão encerrada! (em tom de pregoeiro)
            Suzana retira-se de cabeça baixa.
EDUARDO – (virando a cabeça, procurando) Cadê a minha secretária? (dirigindo-se à promotora) Doutora Vanessa... Hummm! Eu gosto muito desse seu perfume, sabia?
Vanessa sorri.
EDUARDO - (voltando a si) Doutora, qual é o próximo caso que temos aí? (consultando papéis) Vamos depressa que a nossa pauta hoje está cheia.
Redução de luzes. Cortina.



CENA 2





Palco dividido em duas partes iguais. Do lado esquerdo, o apartamento do jovem magistrado; do lado direito, a terraça de um bar. A cortina cobre o lado direito do palco até a metade da cena, de modo a conferir mais movimento e concentrar as atenções sobre o que se passa no apartamento do Dr Eduardo. O estilo da decoração é de um apart-hotel simples, tipo sala e cozinha americana; de mobília uma pequena mesa de sala, um sofá e uma geladeira. O juiz está chegando do trabalho naquela segunda-feira. Monologa.
EDUARDO – (tirando o terno e espreguiçando) Ai ai! Que dia! Que segunda-feira!
Larga o blazer e a gravata sobre o sofá. Dirige-se até a geladeira e pega uma garrafa de vinho pela metade. Saca a rolha e pega uma taça, provando-o analiticamente.
EDUARDO – Está um pouco avinagrado. Mas também! (observa o rótulo) Quando foi mesmo que eu abri essa garrafa? Sexta? Ou foi sábado? Não, foi sábado! Putz, mas essa geladeira não tem nada pra comer, nem um pedaço de queijo! Vou ter que sair pra comer alguma coisa na Av. Brasil. Ah! Vou ligar pra Doutora Vanessa... (pronuncia a palavra “doutora” pausadamente, com ironia, pela intimidade que têm). Deixa eu ver se tem alguma mensagem dela.
Pega o celular. Disca o número.
EDUARDO – Oi, Vanessinha! Como você tá? Que dia, hein! Que dia esse nosso hoje! Escuta, você não quer fazer um lanche e tomar um chope daqui a pouco? Ah, daqui a uma meia hora, mais ou menos. Você quer que eu passe aí pra te pegar ou a gente se encontra lá? Ah, em qualquer lugar, ali na esquina mesmo, onde tem aquela sorveteria, sabe?... Isso! Te espero lá então, daqui a uns quinze minutos. Pode ser? Combinado!
Troca de roupa atrás do biombo. Mais descontraído, veste uma calça jeans, camisa polo e tênis. Vai-se deslocando em direção ao lado direito do palco, enquanto a meia-cortina vai abrindo e descerrando a terraça de um bar. Vanessa já está lá esperando. No bar ao ar livre, há mesas e cadeiras vazias. Um garçom. Um músico com um violão. Eduardo chega e cumprimenta Vanessa beijando-a no rosto.
EDUARDO – E aí, tudo bem?
VANESSA – Ah, tudo indo (um pouco desanimada). Fiquei pensando no caso daquela mãe, sabe?
EDUARDO – Eu também.
O músico dedilha baixinho UN SUEÑO EN LA FLORESTA de Agustín Barrios. O tom da conversa é meditativo, pausado, intercalado por breves silêncios entre os dois.
VANESSA – Fiquei pensando como uma mulher é capaz de se doar tanto por um filho.
EDUARDO – É o amor.
VANESSA – É um mistério, isto sim.
EDUARDO – O amor é um mistério.
VANESSA – Pode ser.
EDUARDO – Bonita essa música, não é?
VANESSA – Sim, mas é triste.
EDUARDO – Você está triste hoje?
VANESSA – Não... acho que estou só cansada.
EDUARDO – Vou pedir um chope. Você quer um?
VANESSA – Sim, por favor. Fiquei pensando na Suzana, uma mulher tão jovem, mas fisicamente acabada (com ênfase)... O sofrimento está estampado no rosto dela. A mulher não tem nem 40 anos e já tem um filho com 18.
EDUARDO – Ela deve ter tido filho muito nova.
VANESSA – Fiquei pensando na minha vida afetiva (erguendo o olhar da mesa e encarando-o): 34 anos, vários namorados, baladas, nenhum compromisso, nem casamento nem filho.
EDUARDO – Ih, você tá parecendo a minha mãe, me cobrando um neto.
VANESSA – Eu queria ter uma filha.
EDUARDO – Por que não um filho?
VANESSA – Não sei. É um sonho que eu tenho. Minha filha iria se chamar Diana.
EDUARDO – Por que esse nome?
VANESSA – É a deusa grega da caça.
EDUARDO – Eu acho que não é grega; é romana.
VANESSA – (pegando na mão dele sobre a mesa) Eu nunca gostei do meu nome. Eu queria me chamar Diana.
EDUARDO – Por que você não escolhe uma divindade mais brasileira? Sei lá, pesquisa alguma coisa na mitologia guarani, por exemplo. No candomblé existe um deus da caça chamado Oxóssi.
VANESSA – Mas Oxóssi é um deus masculino; eu quero ser uma deusa feminina.
EDUARDO – Lá vem você de novo com esse papo de feminismo.
VANESSA – Ih você tá é por fora. Não é nada disso.
EDUARDO – Nossos colegas da UnB odiavam as nossas conversas de antropologia, lembra?
VANESSA – Claro que eu lembro. Bons tempos... Eu era tão mais nova. Nem acredito que já faz 10 anos que a gente se formou.
EDUARDO – Você nunca mais encontrou ninguém da nossa turma?
VANESSA – Não, só você.
EDUARDO – É muita coincidência a gente estudar juntos na faculdade, passar no concurso e vir parar em Foz do Iguaçu!
VANESSA – É mesmo, tem razão (pegando na mão dele de novo).
EDUARDO – Minha querida deusa da caça, a propósito, você sabe o nome dessa música?
VANESSA – Não... (carinhosa, inclinando-se sobre o peito dele)
EDUARDO – (com sotaque) Un sueño en la Floresta de Agustín Barrios, guitarrista paraguaio. (com ar professoral) O Paraguai tem um dos maiores compositores eruditos de todos os tempos, você sabia?
VANESSA – Eduardo (pronuncia o nome dele como uma gata no cio), você quer casar comigo?
EDUARDO – O quê?! Não escutei direito.
A música pára. Silêncio por um instante.
VANESSA – Eu perguntei se você quer casar comigo.
EDUARDO – O que é isso, Vanessa? Estou muito novo pra casar.
VANESSA – Você tem a mesma idade que eu.
EDUARDO – Mas eu não quero casar agora. Tem muito chão pela frente... Aliás, nem sei se a gente está namorando. A gente está namorando ou ficando?
O músico do bar começa a tocar O MEU GURI, de Chico Buarque. O ritmo da conversa fica ainda mais lento, intercalado por longos silêncios
EDUARDO – Ah essa música é linda, você gosta?
VANESSA – Gosto. Quem não gosta? (decidida) Eduardo, você fala que tem um longo chão pela frente. Pois eu acho que muita água já rolou por baixo dessa Ponte da Amizade...
EDUARDO – (desviando o assunto) Sim, o rio Paraná é o segundo maior do Brasil. Aliás, da América do Sul.
VANESSA – Não, doutor Eduardo. Estou falando de águas em sentido figurado. E me refiro à nossa amizade.
EDUARDO – Ah bem.
Nova pausa na conversa. Os dois ouvem atentamente a música.
EDUARDO – Não sei se fiquei impressionado com aquela história, mas essa canção me fez lembrar outra vez o caso da Suzana de Jesus.
VANESSA – Eduardo, me diz uma coisa. Quem era aquela bonitinha que te deu uma olhada no forum hoje de manhã?
EDUARDO – Alguém olhou pra mim, foi?
VANESSA – Não se faça de desentendido. Aquela mulher de tailleur vermelho, que só faltou te comer com os olhos, parecendo a Pomba-Gira.
EDUARDO – Nossa! Não seja cruel com a moça. Aquela é uma advogada muito séria, doutora Melissa Fausto.
VANESSA – Sei.
EDUARDO – Bom, acho que estou começando a ficar bêbado com essa cerveja. Amanhã tenho uma audiência muito cedo. Podemos pedir a conta?
VANESSA – Por mim estou satisfeita. (despeitada) Não tenho mais perguntas, Ex-ce-lên-cia.
EDUARDO – Não seja boba.

Cortina. A música continua até a próxima cena.




CENA 3


Daniel irrompe no palco esbaforido. Está fugindo dos pistoleiros que querem matá-lo. O cenário é a periferia de Hernandarias. Bate à casa de um amigo de infância. Casa simples, de porta e janela. Deve-se entrever nos fundos um grande quintal com o desfiladeiro para o rio.
DANIEL – Socorro! Socorro!
AMIGO – O que foi que houve?
DANIEL – Os homens querem me pegar, cara. Tô ferrado!
AMIGO – Entra aqui, entra.
Daniel abriga-se. Os dois ficam agachados debaixo da janela, sussurrando.
DANIEL – Mamãe foi presa.
AMIGO – Tua mãe, cara? Porra, até tua mãe entrou no tráfico?
DANIEL – Claro que não, pô.
AMIGO – Então o que foi? Ela matou O Coruja?
DANIEL – Também não. Preciso te contar. É uma longa história. Cadê aquele dinheiro que eu pedi pra você guardar? Ainda tem ele aí?
AMIGO – Tenho. Tá aqui ó. Não gastei não.
Tira o dinheiro do bolso e entrega a Daniel. Conta o dinheiro e guarda.
DANIEL – Cara, vou pegar um ônibus pra Assunção. Eles vão me matar, eu tenho certeza. Se acontecer alguma coisa comigo, diz à mamãe que eu amo ela, por favor. E que eu me arrependi antes de morrer.
Chegam os pistoleiros, gritando e forçando a porta.
ENCAPUZADO 1 – Bora, abre essa porta! Perdeu! Perdeu!
ENCAPUZADO 2 – Você tá morto, Danielzinho. Já era, velho! Abre logo!
DANIEL – Cara, ferrou! Faz esse favor pra mim. Diz à mamãe que eu amo ela e que eu me arrependi antes de morrer. Vou pular daqui mesmo! Adeeeeeus...
Se joga no vale do rio Paraná.
ENCAPUZADO 1 – (dirigindo-se ao outro) Rápido, vamu dar a volta pelo outro lado, ele tá fugindo pelo rio.
Saem correndo pelo lado oposto do palco. Depois de alguns segundos, voltam os dois.
ENCAPUZADO 1 – Você viu ele por aí?
ENCAPUZADO 2 – Não.
ENCAPUZADO 1 – Olha lá! (apontando para o céu)
ENCAPUZADO 2 – O quê? É a alma dele indo pro céu?
ENCAPUZADO 1 – Não, animal. São os urubus! Você não tá vendo?
ENCAPUZADO 2 – Ah sim. Agora eu tô vendo.
ENCAPUZADO 1 – Esse aí já era.
ENCAPUZADO 2 – Virou café-da-manhã de urubu.
ENCAPUZADO 1 – Vambora. Deixa o corpinho dele fedendo lá no rio. Miserável vai inchar d’água. Vai ficar parecendo um sapo.
ENCAPUZADO 2 – Quando o cadáver incha, ele desce boiando na correnteza. Aí é só a gente pegar lá embaixo e costurar a boca dele.
ENCAPUZADO 1 – Que costurar o quê? Ele já tá morto mermo...
ENCAPUZADO 2 – Ué, pra ele não dedurar nós lá no Além!
ENCAPUZADO 1 – Deixa de ser, mané! Vambora que o chefe tá esperando.
Saem. Depois de alguns segundos, aparece Daniel do lado oposto do palco, esbaforido. Olha para um lado e outro... Ouve-se um som mecânico de ônibus (sonoplastia). Daniel acena ao ônibus e corre.

Cortina.

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