sábado, 20 de dezembro de 2014

OS CONFINS - ATO 2 (Cenas 1 a 4)


CENA 1

Esta cena acontece em três ambientes. Do lado direito do palco, os apartamentos de Melissa e de Eduardo; o dela em primeiro plano, o dele em segundo plano. Ela caminha de um lado para outro, enquanto ele repousa na cama. Enquanto conversam ao telefone, a cortina deve ocultar a metade esquerda do palco e depois descerrar o Casino Tango, onde os dois marcaram o primeiro encontro.
            MELISSA – Ai, será que eu ligo ou não ligo? Melhor não... ele vai me achar oferecida. A gente mal se conhece... Bom, tecnicamente, nós fomos apresentados. Então... Ai, e quem é que liga pra isso hoje em dia? Se é o homem que deve tomar a iniciativa, se é a mulher... Tanto faz, gente! Vou ligar! Não, espera aí! Já sei. Vou mandar mensagem, é melhor. (pegando o celular) “Ooooi, dou-tor Wal-lens-tein...”. Xi, e agora? Como é que se escreve Wallenstein? Não posso escrever o nome do homem errado. A primeira impressão é a que fica. (decepcionada consigo) Ai, ele vai me achar burra... A promotorazinha lá fez mestrado em Bonn. E eu estudar alemão que é bom... Ah, o cartão de visita. Ele me deu o cartão de visita. Onde foi que eu coloquei? Aquiii! Ah, estava certinho o sobrenome dele. E eu me preocupando à toa... Melissa, te acalma! Não vai estragar o primeiro encontro, sua louca! Fica calma, relaaaaxa... Isso! Respira fundo. Continuando... “Ooooi, dou-tor Wal-lens-tein...” (interrompendo de novo) Ou será que era melhor chamar de Eduardo mesmo? Não. Deixa assim: não vamos forçar a amizade por enquanto... “A-que-le con-vi-te para ir à Ar-gen-ti-na es-tá de pé?”. De pé? Ai, que horrível! Já sei: “Aceito o seu convite para ir a Argentina hoje”. “Estou lou-ca para co-mer... um doce de leite”. Ai, que maravilha! (caminhando pra lá e pra cá) Ah, já respondeu! (lendo a mensagem) “Sim. Me liga”. Devia estar esperando minha mensagem. Vamos lá... (discando o número) Alô?
EDUARDO – (deitado) Oi, doutora Fausto. Tudo bem?
MELISSA – Aqui, tudo ótimo. E por aí?
EDUARDO – Eu estava pensando em telefonar pra você.
MELISSA – Não me diga... Respondeu rápido, hein, a mensagem.
EDUARDO – Pensei que não fosse ligar.
MELISSA – Ah, por quê? Eu cumpro o que prometo.
EDUARDO – Sei lá. Você me pareceu tão séria hoje de manhã.
MELISSA – Bem, eu não estava séria. Estava tensa.
EDUARDO – Tensa por quê?
MELISSA – Eu fico tímida quando me apresentam uma pessoa pela primeira vez.
EDUARDO – Eu te entendo. Também sou tímido.
MELISSA – Ah é? Não parece...
EDUARDO – É que eu disfarço bem.
MELISSA – Então... você queria passear na Argentina?
EDUARDO – Sim, pois é. Sou novo aqui na cidade e não conheço quase nada ainda.
MELISSA – Ah, eu amo o doce de leite argentino.
EDUARDO – Eu prefiro os vinhos.
            MELISSA – Bem, eu não bebo. Mas posso te levar pra conhecer um lugar legal.
            EDUARDO – É romântico?
            MELISSA – (sorrindo desconcertada) Bem... é bonito o lugar.
            EDUARDO – Hoje está uma noite muito romântica, não acha?
            MELISSA – Eu diria que está uma noite quente.
            Sorriem ao telefone.
            EDUARDO – E que lugar é esse?
            MELISSA – Se chama Casino Tango.
            EDUARDO – Desculpa, mas não posso entrar em cassino.
            MELISSA – Por quê?
            EDUARDO – Você sabe, é proibido no Brasil.
            MELISSA – Mas é permitido do outro lado da fronteira.
            EDUARDO – Eu sei, mas um juiz tem que preservar a sua imagem.
            MELISSA – Você não estará fazendo nada de errado.
            EDUARDO – É aquela história da mulher de César...
            MELISSA – (relaxando no sofá) Que tem a mulher de César?
            EDUARDO – Diz a sabedoria popular: a mulher de César tem que parecer honesta.
            MELISSA – Não tem nada demais, é só uma noite...
            EDUARDO – Alexandre Magno perdeu o império por uma noite.
            MELISSA – Você acredita em citações clássicas?
            EDUARDO – Podemos imaginar uma manchete moderna. GAZETA DO IGUAÇU: Extra! Magistrado brasileiro é flagrado em jogos ilícitos...
            MELISSA – Vamos, a gente fica só na área externa do restaurante, não entra no salão de jogos.
            EDUARDO – Foi assim que Israel perdeu a guerra e Napoleão perdeu a paz.      
MELISSA – Ai, não seja tão Caxias. Além do mais, nós temos um bom argumento jurídico: cada país define o que é certo e errado dentro de suas fronteiras. É uma questão de soberania e de respeito ao direito internacional.
            EDUARDO – (falando consigo) Essa é do balacobaco! (para ela) Está bem, dou-to-ra Melissa. Se eu for pra cadeia, você será minha advogada?
            MELISSA – Eu vou até o último recurso pra te tirar de lá.
            Sorriem.
            EDUARDO – (falando de si pra si) Com você, eu vou até ao inferno.
            MELISSA – Nos encontramos lá daqui a pouco então?
            EDUARDO – Sim, em meia hora estarei lá.
            Movimento de cortinas. Os dois caminham em direção à metade esquerda do palcoLua cenográfica. Restaurante argentino com maître.
            MELISSA – Ah que coincidência!
            EDUARDO – Chegamos juntos!
            MELISSA – É o destino nos unindo mais uma vez.
            EDUARDO – Você viu a lua? Que enorme!
            MELISSA – A lua está linda!
            EDUARDO – Lua soberana!
            MELISSA – Sabe onde eu gosto de olhar a lua?
            EDUARDO – Onde?
            MELISSA – Lá no meio das Cataratas, na Garganta do Diabo.
            EDUARDO – Garganta do Diabo... Não gosto desse nome, soa meio macabro. Por que será que chamam assim?
            MELISSA – Sei lá, talvez porque o Diabo é o Senhor da Morte e se alguém cair lá embaixo morre...
            EDUARDO – E quem caiu encontrou mesmo o Diabo lá... no fundo?
            MELISSA – Não sei, jamais uma alma voltou das águas pra contar.
            EDUARDO – Você já teve vontade de pular lá de cima pra saber?
            MELISSA – Só uma vez.
            EDUARDO – Faz tempo?
            MELISSA – Eu tinha 15 anos. Entrei escondida no parque à noite.
            EDUARDO – Você não ficou com medo?
            MELISSA – Não. Eu costumava fazer isso na minha adolescência.
            EDUARDO – E o que você sentiu?
            MELISSA – Primeiro, me deu um arrepio. Era lua nova. Eu estava bem na borda do mirante, sozinha. Depois do arrepio, veio um vento, uma brisa suave... Aí me bateu uma curiosidade... (pausa como se estivesse revivendo aquele instante) Depois eu senti uma vertigem e perdi a coragem. Acho que é por isso que chamam de Garganta do Diabo: pelos desejos ruins que dá na gente.
            EDUARDO – Entendi. Mas as Cataratas são divinas!
            MELISSA – Um dia ainda te levo lá.
EDUARDO – Vou cobrar, hein.
O maître aproxima-se da mesa.
MELISSA – Eu cumpro o que prometo.
EDUARDO – O que você vai pedir?
MELISSA – Vou querer um salmão. E vinho branco pra acompanhar.
EDUARDO – Você me disse que não bebia.
MELISSA – Esta noite é especial.
EDUARDO – Pois eu vou de bife de chorizo. E vinho tinto, por favor.
Retira-se o maître. O som do restaurante toca a canção POR UNA CABEZA, de Carlos Gardel.
MELISSA – Ai, eu amo essa música.
EDUARDO – Você viu o filme?
MELISSA – Eu vi todas as versões.
EDUARDO – Só assisti àquela com Al Pacino.
MELISSA – Ah, eu prefiro a versão italiana. É muito triste... Você sabia que o ator morreu num acidente de carro e nunca chegou a ver o filme exibido no cinema?
EDUARDO – Não fazia a menor idéia. Que tragédia! Mas o que é que te atrai tanto nesse filme?
MELISSA – Não sei, acho que a figura do cego. É muito forte.
EDUARDO – E o desejo de suicídio?

MELISSA – Talvez.
Chegam os pratos.
EDUARDO – Bom apetite.
MELISSA – Obrigada.
EDUARDO – Pra mim, o mais interessante é como a amizade deles vai crescendo aos poucos.
MELISSA – E a cena do tango!
EDUARDO – Claro!
MELISSA – (enamorada) Como eles dançam!
EDUARDO – (fechando os olhos e suspirando) E o cheirinho dela!
            Beijam-se pela primeira vez, um beijo lento e molhado, derrubando uma taça de vinho tinto que escorre pelo chão. Reduzem-se as luzes.
            Cortina.
            

CENA 2

Na cadeia, a diarista conversa com sua companheira de cela. Dois catres entre grades, nada mais.
CARMEN – Como você veio parar aqui, colega? Matou quem?
SUZANA – Eu não matei ninguém não. Eu queria ter matado...
CARMEN – Teu marido?
SUZANA – Não, este traste morreu mesmo foi de morte natural.
CARMEN – Morreu de quê?
SUZANA – Bebia muito. Diz que foi cirrós que deu nele.
CARMEN – Sei como é...
SUZANA – O meu sogro era assim, viciado na bebida. O povo diz que é mal de família.
CARMEN – Eu não acredito nessas coisas. Cada um faz o seu destino.
SUZANA – Pode ser.
CARMEN – Mas então por causa de quê tu veio pra cá? Foi um cinco sete?
SUZANA – Um cinco sete? O que é isso?
CARMEN – Vai se acostumando. São os códigos da cadeia... Se você roubou, você tem que falar pro advogado que você é o 1-5-7, pra ele entender. Eu demorei muitos anos pra aprender esses códigos; a colega que tava antes no teu lugar, ela era um sete um. Se você matou, você fala que é o cento e vinte e um.
SUZANA – Eu não matei ninguém não.
CARMEN – Então foi o quê, colega? Tráfico?
SUZANA – Foi tráfico, mas a culpa não foi minha não.
CARMEN – Ah conta outra, colega. Aqui todo mundo é santo.
SUZANA – Santa eu não sou, mas juro que não tenho culpa. Só fui em cana porque o miserável do Bode-Brabo botou meu filho nessa história.
CARMEN – Quem? O Tião?
SUZANA – O próprio!
Silêncio.
SUZANA – Eu trabalho é de diarista. Passo o dia em casa alheia, limpando bosta dos outros.
CARMEN – Cruz credo. Deve ser horrível...
SUZANA – Não é não. É um trabalho como outro qualquer.
CARMEN – E como é a casa do patrão? Tem cofre, joia guardada?
SUZANA – Olha, se tem, eu nunca vi.
CARMEN – Há quanto tempo tu trabalha lá?
SUZANA – Depende, eu limpo mais de uma casa.
CARMEN – Um patrão é ruim. Imagine dois...
SUZANA – É... Cada um tem a sua natureza. Duas vez por semana eu trabalho pra uma família de libanês. Tem o apartamento da doutora, que eu faxino só uma vez por semana, porque ela é sozinha e não faz muita sujeira. E tem o Sr Karten, que eu vou lá quando o filho dele me liga pra eu ir ver como ele tá.
Passa o carcereiro e se aproxima da grade, observando.
SUZANA – Esse Karten é um alemão rico que tem fazenda no Paraguai. Por causa de um derrame trouxeram ele pra morar aqui, devido aos remédio que ele toma. Cuidar de velho é como lidar com criança: tem que ter muita paciência. Mas eu acho que esse alemão finge a doença. Às vezes penso que ele tá é muito são da cabeça. Outro dia eu fui fazer faxina de saia e o velho meteu a mão na polpa da minha bunda, querendo me agarrar. Velho safado! E queria me pagar cinquenta reais pra eu fazer carinho nele. Velho safado! Eu telefonei pro Seu Frederik Karten pra dizer que nunca mais eu faxinava aquela casa. Foi me pedindo pra ter paciência, que velho é assim mesmo, disse que ia aumentar a minha diária, que não conhecia ninguém de confiança... Acabei ficando. E o desgraçado do velho na outra semana com a cara mais lisa, como se nada tivesse acontecido. Fingiu esquecimento... me olhando de rabo de olho. Eu digo que ele não teve derrame coisa nenhuma. Pra mim, ele se cansou da vida na fazenda, de dever ao governo, lutar contra invasor de terra... Agora está aí, viúvo, vivendo sozinho naquela casa. Coitado. Me dá até pena.
CARMEN – E quem é que toma conta do dinheiro dele? Ele dorme sozinho?
SUZANA – Não, ele tem um compadre de Santa Catarina que às vezes vem aí e fica umas semanas fazendo companhia a ele.
CARMEN – E ele guarda dinheiro debaixo do colchão?
SUZANA – Não! Ele urina na cama... Imagina o que é lavar lençol de idoso e colocar colchão mijado pra secar no sol!
            Passa outra vez o carcereiro, observando.
            SUZANA – Mas eu tenho pena mesmo é da doutora promotora. A mulher já vai com mais de trinta anos e não tem família. Esses dias arranjou um namorado novo, mas disse pra mim que não ia ter filho. Prefere criar um cachorro. O bicho é muito mal educado: solta pêlo na casa inteira. Me dá um trabalho... A patroa é louca por esse cachorro, dorme até com ela na cama, beija na boca como se fosse gente. Em casa de madame tem cachorro melhor que muita criança nesse mundo. Ai, o meu Danielzinho... me deu um aperto no coração... Será que ele tá bem?
Passa o carcereiro mais uma vez.
CARMEN – Esse fela da mãe tá rondando e escutando a nossa conversa. O que será que ele quer?
SUZANA – Não sei. Ele está olhando mais pra você.
CARMEN – Todo mundo aqui me conhece. Meu nome de guerra é Carmen Duralex. Eu não tenho medo de homem! Nem de mulher nenhuma!
SUZANA – Calma, ele já está indo embora.
CARMEN – Ele não sabe quem está provocando... Se ele se aproximar aqui de novo, eu arranco fora a tromba dele. Peguei a vagabunda na cama com meu marido e capei o desgraçado com faca cega de cozinha.
SUZANA – Pronto, ele já foi. Acho que veio ver se estava tudo bem...
CARMEN – Antes só entrava mulher na cadeia feminina. Mas era até pior, sabia. Eram mais abusadas.
SUZANA – Ai, quando é que eu vou sair daqui? Não aguento mais...
CARMEN – Vai se acostumando. Já aniversariei seis vezes aqui dentro.
SUZANA – Estou preocupada com meu filho.
CARMEN – Olha ali, o maldito está vindo de novo... Se prepara!
CARCEREIRO – Quem é a detenta Carmen de Brito?
CARMEN – Sou eu. Por quê?
CARCEREIRO – Pode arrumar as suas coisas que a senhora vai ser liberada.
CARMEN – Eu?! Tem certeza? Como é que você sabe?
CARCEREIRO – Ora, como é que eu sei! O alvará está aqui na minha mão. O diretor mandou a senhora recolher seus pertences. A senhora já conhece o procedimento? Antes, tem de passar no serviço médico pra fazer a biometria, exame de sangue, a rotina completa.
CARMEN – (para a companheira) Eu nem acredito, colega. Estava faltando ainda um ano e oito mês...
SUZANA – Não reclame; notícia boa a gente comemora.
CARMEN – É que uma vez fizeram isso só de maldade com uma presa. Era tudo mentira. Ela só ia ser transferida de pavilhão...
SUZANA – Não, não pense assim. Alguma coisa boa pode ter acontecido no seu processo.
CARCEREIRO – Vai ver que o doutor que está lá fora pediu um habeas corpus...
            CARMEN – Ah o meu advogado... e por que o cretino não fez isso antes?
            SUZANA – (ajudando a recolher uma muda de roupa) Vai em paz... fico feliz por você.
         CARMEN – (abraçando-a) Gostei de ter te conhecido, colega.  Escuta um conselho: não dá moleza pra essa gente aqui não. Esse povo não presta! Até outro dia!
            SUZANA – Te cuida.
            A grade abre, Carmem sai e entra outra presa que observa Suzana. Cada uma fica sentada no catre a seu canto. Reduzem-se as luzes deixando-se ver as duas na penumbra, apartadas.

Cortina.



CENA 3



                Apartamento de Eduardo Wallenstein. Entram.

EDUARDO – Pode se sentar. Fica à vontade.
MELISSA – Obrigada.
EDUARDO – Vou pegar alguma coisa pra gente beber.
MELISSA – Eu não bebo, lembra?
EDUARDO – Mas na semana passada você bebeu.
MELISSA – É que era uma noite especial.
EDUARDO – Deixa disso. Só um pouquinho.
MELISSA – Por um pouquinho Alexandre perdeu um império, lembra?
EDUARDO – Ei, essa frase é minha! Pois para seu governo, doutora Melissa Fausto, (aproximando-se e beijando-lhe o pescoço) a noite de hoje será ainda mais especial para nós...
MELISSA – Ah é? Você parece muito mal intencionado.
EDUARDO – Prefere cerveja ou vinho?
MELISSA – Ai, eu não deveria, viu. Mas você está demais hoje. Só uma taça de vinho, está bem?
EDUARDO – Do meu preferido.
Entra para a cozinha, enquanto ela fica examinando os CDs.
MELISSA – Você gosta de música?
EDUARDO – E quem não gosta...
MELISSA – Você tem a coleção completa da Marisa Monte!
EDUARDO – Sim, minha ex-namorada adorava. Eu comprei pra dar de presente, mas aí a gente acabou.
MELISSA – Ah é? Posso ficar com o presente?
EDUARDO – Não sei... ainda não. Vai depender do seu comportamento.
MELISSA – Você é malvado. Eu adoro essa música aqui “Bem Que Se Quis”.
EDUARDO – Ué, põe pra tocar então.
                Toca a música baixinho.
                MELISSA – Como é o nome da sua ex?
                EDUARDO – Vanessa.
                MELISSA – Ah eu conheço! É aquela promotorazinha chata.
                EDUARDO – Não fale assim; ela é gente boa. Por que você diz isso?
                MELISSA – Sei lá. É o jeito que ela me olha, sabe, como se estivesse me examinando de cima a baixo. Odeio quem me olha assim.
                EDUARDO – Talvez esteja te achando bonita.
                MELISSA – Fala sério.
                EDUARDO – Ou talvez esteja só com ciúme de você.
                MELISSA – Acho mais provável. Ela sabe que a gente está ficando?
                EDUARDO – Não tenho a menor idéia, mas não importa. Vamos brindar?
                MELISSA – Vamos. Um brinde... a quê?
                EDUARDO – Ao nosso amor nesta noite.
                MELISSA – Que a gente se conheça um pouco melhor esta noite!
                EDUARDO – Gostei: que a gente se conheça tal como veio ao mundo.
                MELISSA – Você e suas frases de duplo sentido.
                EDUARDO – (sorrindo) Esta noite quero conhecer o teu verdadeiro ser, sem os véus da convenção social.
                MELISSA – Calma, Eduardo. Está cedo.
                EDUARDO – Você quer um queijinho?
                MELISSA – Quero um queijinho e um beijinho.
                Com um beijo, Eduardo levanta-se para preparar um tira-gosto na cozinha, enquanto Melissa vai secretamente ao lavabo e derrama parte de seu vinho na pia.
                EDUARDO – (retornando) Posso tocar violão pra você?
                MELISSA – Ah você sabe tocar violão?
                EDUARDO – Não sou nenhum Paco de Lucía, mas...
                MELISSA – Que música você vai tocar?
                EDUARDO – Uma música que eu mesmo compus.
                MELISSA – Olha só! Você também é compositor.
                EDUARDO – Terminei a letra outro dia; se chama SERENATA.
                MELISSA – Você fez pra qual das suas mil ex-namoradas?
                EDUARDO – Pra nenhuma especificamente. Pra uma mulher dos meus sonhos, que não existe.
                MELISSA – Então eu posso me apropriar dela?
                EDUARDO – Fique à vontade. É pra quem quiser admirar essa idéia de mulher.
                MELISSA – Humm! Me conta aí como é essa mulher...
                EDUARDO – Pensando bem, ela até me lembra você, viu. É misteriosa assim como você.
                MELISSA – Você me acha misteriosa, é?
                 EDUARDO – Bastante... desde quando você me contou aquela história do fosso.
                MELISSA – Qual história? Ah, da Garganta do Diabo você quer dizer.
                EDUARDO – Um pouco sinistra. Você invocou mesmo o Diabo lá no meio das Cataratas?
                MELISSA – Mais ou menos. Naquela época, eu tinha uns 16 anos e era muito revoltada, sabe, porque meus pais tinham se separado; eu só escutava rock e andava com uma galerinha esquisita. (mostra o pé) Tatuei até uma caveira aqui ó.
                EDUARDO – Você escutava aquelas bandas satanistas?
                MELISSA – Sim, aquelas da Noruega... eu sabia todas as letras de cor. Eu era uma garota alternativa que escutava rock e lia O MUNDO DE SOFIA.
                EDUARDO – E você ainda entra na calada da noite no Parque Nacional?
                MELISSA – Não! Isso era coisa de adolescente. Hoje em dia o controle está bem mais rigoroso.
                EDUARDO – Graças à nova legislação ambiental.
                MELISSA – A nossa profissão é tão sem graça, não é, Eduardo? O Direito não deixa nenhuma margem à aventura, à poesia, aos contos de terror.
                EDUARDO – É verdade, eu concordo. Falando em poesia, posso tocar a canção pra você?
                MELISSA – Mas é claro. Estou louca pra ouvir.
         
              O ator canta ao violão a SUITE NORDESTINA II – SERENATA, de Nonato Luiz. A letra para a melodia é:

A lua vai tocando uma sonata
Para roubar a minha serenata
Ó lua, vai
Flutua, vai
Boiando... flor de prata

Quando a morena acena da janela
A lua vem dormir nos braços dela
Ó lua, vem
Pra rua, vem
Pra mim, rosa amarela

A moça me esperava na ladeira
Me namorava feito brincadeira
Ó moça, quem
brincou fui eu
co’ espinho da roseira

Te esperarei, morena, na capela
Terno, gravata e cravo na lapela
A lua cai...
Bem nua vai
Sonhando a minha amada

Enquanto ele toca a canção, absorto em sua música, ela enche as duas taças de vinho, mas discretamente afasta-se e trata de derramar metade da sua.  

                MELISSA – Bravo! Adoro canções que falam da lua.

                EDUARDO – Está gostando do vinho, hein.

                MELISSA – Está uma delícia, mas não posso tomar muito. Amanhã tenho que trabalhar.

                EDUARDO – Amanhã é sábado.

                MELISSA – Eu sei, mas tenho que ir ao escritório. Tenho um serviço pra entregar ao meu chefe.

                EDUARDO – Você devia era cobrar hora extra do seu chefe.

                MELISSA – É mais fácil ele me demitir e contratar outro do que pagar hora extra. Infelizmente não sou funcionária pública: não tenho essas mordomias.

                EDUARDO – Minha mãe dizia: vida boa é a do vizinho.

                MELISSA – Estou brincando.

                EDUARDO – Acho que vou tomar um copo d’água. Estou ficando um pouco bêbado já.

                MELISSA – É porque você não comeu nada. Não se pode beber assim...

                EDUARDO – Você também quer um pouco d’água?

                MELISSA – Não, obrigada. Estou bem.

                Eduardo vai à cozinha beber água.

                MELISSA – Agora é a minha vez de diverti-lo com uma citação clássica, doutor Wallenstein.

                EDUARDO – (sentando-se zonzo) Qual?

                MELISSA – O vinho não é uma bebida para se beber cansado; do contrário, embriaga mais rápido.

                EDUARDO – Ah é? Onde está dito isso?

                                MELISSA – N’O Banquete, de Platão. Estavam os filósofos da Grécia discutindo o Amor. Um poeta ficou admirado com a sabedoria de Sócrates e mais espantado ainda em saber que Sócrates jamais se embriagava com vinho.

                EDUARDO – (bocejando) Sei.

                MELISSA – Aí Sócrates elogia uma mulher chamada Diotima, sua professora em matéria de Eros. Para escândalo geral, Sócrates revela aos presentes que essa mulher lhe ensinou um segredo: o Amor não é um deus. Eros é um gênio que liga o humano ao divino, enviando mensagens dos deuses para os homens e transmitindo os desejos dos homens para os deuses.

         EDUARDO – Estou passando mal...

O juiz adormece na poltrona do sofá, sob o efeito de algum sedativo. Meia-luz no palco.

MELISSA – (observando e prosseguindo naturalmente) E começou a explicar a Sócrates como nasceu o Amor. Dizia que o Eros é filho da Carência e do Excesso, por isso apresenta características ora da mãe, ora do pai. (observando-o com um rabo de olho, continua) Aí no final do Banquete, o jovem poeta se levanta e vai-se sentar ao lado de Sócrates. Nesta hora alguém que foi embora esqueceu a porta aberta e entra uma banda de foliões carnavalescos no recinto. É aquela confusão! Os convidados são obrigados a beber o resto do vinho a goladas (bebe o resto de sua taça).
               
                Observa se Eduardo está completamente caído de sono e começa a andar pelo apartamento procurando alguma coisa.

MELISSA – (prossegue, revirando gavetas cuidadosamente) Alguns dos presentes vão embora. Tem um sujeito que fica lá embriagado, caído de sono; quando ele acorda, já com os primeiros raios de sol, você não vai acreditar, Eduardo... Você acredita que estava lá o Sócrates, firme e forte, o poeta Agatão e aquele dramaturgo, o Aristófanes? Os três bebiam numa enorme taça de vinho, passando a taça de um para o outro como se fosse uma cuia de tereré. A essa altura, ninguém lembra direito o que eles estavam discutindo, mas era alguma coisa a respeito da natureza do drama e se ouvia a voz de Sócrates provando por A mais B que o talento necessário para escrever uma tragédia era o mesmo para escrever uma comédia. E que um comediógrafo tinha de ser um grande artista da tragédia também. Aí lá pelas tantas, os dois – Agatão e Aristófanes –  foram adormecendo também, sob efeito do álcool, (guardando algo no bolso) cada um tombando pra um lado. Até que Sócrates (caminhando na ponta dos pés) acomoda os seus dois últimos interlocutores na poltrona (ajeitando-o no sofá) e vai pra casa.

Retira-se à meia-luz.        

Cortina.




CENA 4

Escritório ZAMBETTA & ADVOGADOS ASSOCIADOS. Dr Bruno Zambetta conversa com Chang Lu, o poderoso chefão.

CHANG LU – Eu te dei uma missão e você não executou.

ZAMBETTA – Calma, chefe. Ela já deve ter conseguido alguma coisa.

CHANG LU – E por que não deu notícia?

ZAMBETTA – É uma missão muito arriscada. Dei ordens pra ela ser cautelosa e não deixar nenhuma pista.

CHANG LU – (impacientando-se) Liga de novo. Liga de novo.

ZAMBETTA – (telefonando) Não está atendendo. Vou enviar outra mensagem.

CHANG LU – Seu incompetente, a sua vida e a minha dependem disso.

ZAMBETTA – Eu sei, chefe.

CHANG LU – Você quer ficar de molho na piscina de sal?

ZAMBETTA – Deixa comigo, chefe. Eu vou pessoalmente na casa dela arrancar esses documentos.

CHANG LU – Você não vai sozinho. Meus rapazes vão com você.

Saem. Do outro lado está a casa de Melissa, que acorda de camisola com a campainha tocando.


MELISSA – Ai, quem interrompe o sono da princesa? (com dor de cabeça) Que horas são? Tenho que ir para o escritório... Ai, eu não acredito! Eu tive coragem! E agora? O que será que eles querem fazer com o Eduardo? Será que vão matá-lo? Eu não quero que o Eduardo morra... Eu não devia ter feito isso! Será que eles estão planejando matar um juiz? Não, eu não acredito, o Dr Bruno não seria capaz. Deve ser a defesa num processo grande. Mas mesmo assim! O que é que eu fiz? Isso é muito errado. Vou desistir dessa ação: invento uma desculpa qualquer, saio desse escritório, peço as contas. Tem algo de muito podre nessa história... Não faz parte dos honorários de um advogado roubar os documentos de um processo. Qual é a desculpa que vou inventar pra não aparecer no escritório hoje? Vou dizer que bebi e estou com muita ressaca, não é mentira...

Tocam novamente a campainha e batem à porta.

MELISSA – Mas quem será? (gritando para a porta) Espera um minuto! Preciso me vestir!

Mais pancadas à porta.

ZAMBETTA – Doutora Melissa, abra a porta, por favor.

MELISSA – Ai, ai, ai. Ele veio buscar! E agora? Estou frita. (escondendo coisas) Preciso esconder esse pendrive e esses papéis. Ai, o Eduardo vai me matar. Não, eles vão é me matar. Será que estão planejando matar o Eduardo? Como é que eu fui entrar numa roubada dessa...

Arrombando a porta, entram Dr Bruno Zambetta, Chang Lu e seus homens.
ZAMBETTA – Onde está o relatório de inteligência e o pendrive com as fotografias?

MELISSA – Eu lhe disse: não consegui nada ainda.

CHANG LU – (agarrando-a pelo cabelo) Deixa comigo interrogar a mocinha. A senhora vai dizer onde estão as fotos e o relatório.

MELISSA – Eu não tenho nada, eu juro. Não tive tempo ainda...

CHANG LU – Mentira! Você estava ontem à noite no apartamento dele. Nós te vigiamos.

MELISSA – Mas eu não encontrei nada!

CHANG LU – Vadia mentirosa, (apontando os encapuzados) eles te viram sair com uma pasta na mão. (para eles) Procurem aí. Vamos encontrar.

Espancam-na. Fica caída no chão. Vasculham a casa.
MELISSA – (chorando) Eu não tenho nada. Eu não tenho nada.

ZAMBETTA – Melissa, facilite as coisas. Diga logo onde está.

MELISSA – (chorando) Eu não sei. Eu não tenho.

ZAMBETTA – Sua vida e a minha dependem dessas fotos.

MELISSA – (chorando) Mas eu não tenho.

ENCAPUZADO – Chefe, é isso aqui?

CHANG LU – Mostra pra ele.

ZAMBETTA – É isso mesmo. Está vendo, chefe? Eu lhe disse que ela ia fazer o serviço direitinho.

CHANG LU – (a ela) A senhorita tem sorte: com um pouco mais de tempo, eu ia te amarrar nessa caminha e cheirar teu pescocinho... E te fazer um carinho bem gostoso...

ZAMBETTA – É uma boa moça: está tudinho aqui. Vamos indo?

ENCAPUZADO – É pra levar ela com a gente, chefe?

ENCAPUZADO – A gente faz uma festinha com ela lá no caldeirão...

ZAMBETTA – A vizinhança está estranhando o nosso carro parado ali na porta. É melhor a gente se mandar logo.

ENCAPUZADO – É um desperdício deixar esse piteuzinho, chefe. Deixa a gente levar...

ZAMBETTA – O vizinho pode ter ligado pra polícia, chefe. Vai chamar muito a atenção.

CHANG LU – Deixa a vadia aí. Vambora.

Saem. Toca o segundo movimento de LA CATEDRAL, de Agustín Barrios. Melissa fica no chão, em prantos. Cortina.

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