sábado, 27 de dezembro de 2014

OS CONFINS - ATO 3 (Cenas 1 a 3)

CENA 1

         

Entra uma segunda companheira de cela, desconfiada, e encontra Suzana rezando de costas.


SUZANA – Você tá chegando agora; pode sentar nessa cama maior aí. Eu não me importo.

COMPANHEIRA – Fica sossegada, tô vindo da outra ala. Já vou voltar pra lá.

Silêncio.


COMPANHEIRA – Aproveita que você tá rezando aí e reza por mim.

SUZANA – Está bem.

COMPANHEIRA – Mas que maldade fizeram com esta presa que tava aqui...

SUZANA – O que fizeram com ela?

COMPANHEIRA – Enganaram ela mais uma vez. Pensou que fosse ganhar liberdade; mudou só de pavilhão.

Silêncio.


SUZANA – Mas que vantagem viram nisso? O prazer de ser ruim...

COMPANHEIRA – Ou não queriam ela perto de você. Ou me queriam aqui bem do seu lado.

Silêncio. A diarista segue ajoelhada ao pé da cama. Com um chuço, a outra golpeia-a pelas costas. Suzana cai sangrando.

COMPANHEIRA – Vai rezar no além, X9! A lei da cadeia é uma só. Abriu o bico... tem que pagar. (provando o sangue com a ponta do dedo) Humm... Que sobremesa você comeu, mulher? Você está doce, doce. (para a janela da cela) Socorro! Tem uma suicida aqui!

Puxando um lençol da cama, começa a limpar a cena do crime; logo desiste.

COMPANHEIRA – (provando o sangue) Deixa eu provar um pouquinho mais do teu veneno. Hummm... Mulher, você bebeu dentro da cadeia? Está puro álcool! Vou ficar bebinha. Socorro, agente! Uma mulher se feriu aqui! Socorro! A interna se matou!

Cortina.



ATO 3

CENA 2

No meio da rua.


MELISSA – Juro pra você que eu não queria fazer isso!

EDUARDO – Agora nós vamos até o fim nessa história, madame. Eu vou te botar na cadeia.

MELISSA – Não fale comigo desse jeito, Eduardo. Eles arrombaram a minha casa e pegaram as coisas. Eu já estava arrependida e ia te devolver tudo. Não sei o que deu em mim!

EDUARDO – Você vai se lembrar diante do delegado.

MELISSA – Deixa eu ir à polícia contigo.

EDUARDO – Comigo não. Eu vou sozinho.

MELISSA – Eu quis voltar atrás e desistir de tudo. (divagando) Não sei o que me deu: fui me deixando enredar pela vida assim como uma cobra de rio, sabe, que foi me abraçando, me apertando, me deixando cada vez mais sem fôlego e paralisada. Naquela noite na tua casa, eu já estava dividida... Eu não queria, eu não ia fazer aquilo. Mas de repente senti um impulso dentro de mim, uma voz dizendo: “Ninguém serve a dois senhores. E você já escolheu um lado. Se der pra trás, vai trair a ambos”. (se ajoelhando diante dele) Foi uma tremenda confusão na minha cabeça, depois a bebida, a pressão que eu ia sofrer no dia seguinte... Me perdoa, Eduardo!

EDUARDO – Por mais que eu quisesse acreditar, a verdade é que agora o meu nome está enlameado nessa história. Vou à polícia contra você, até para limpar a minha reputação.

São surpreendidos na rua por homens armados.
ENCAPUZADO 1 – De pressinha, façam tudo o que a gente mandar.

ENCAPUZADO 2 – Entra no carro, senão a gente te apaga aqui mesmo.

MELISSA – Foge, Eduardo! É a mim que eles querem sequestrar! Salva a tua vida!

Dr. Eduardo Wallenstein, assustado, sai de cena correndo. Os encapuzados agarram-na.

MELISSA – (estridente) Ai, está me machucando! (voz abafada por um travesseiro) Socorro! Socorro!

Os atores retiram-se do palco pela esquerda e retornam em seguida. Com os olhos vendados e vestindo uma camisola branca comprida, Melissa é conduzida a um porão escuro (meia-luz no teatro). Ali estão Chang Lu e seus sequazes.
MELISSA – Onde estou?

BANDIDO 1 – Na Vila Portes.

MELISSA – Onde exatamente?

CHANG LU – Nem adianta saber. Na Vila Portes, todas as ruas são iguais.

BANDIDO 2 – Posso contar, chefe?

BANDIDO 1 – Fala logo, animal.

BANDIDO 2 – Você está achando escuro, princesinha, porque estamos no subsolo de um estabelecimento comercial.

BANDIDO 1 – Isso aqui não é estabelecimento comercial, idiota.

BANDIDO 2 – Então é o quê?

BANDIDO 1 – Estacionamento rotativo.

CHANG LU – Chega de conversa. Tragam a belezura pra mim.

A garota está de mãos atadas. Um capanga gordo e nojento passa a mão lascivamente nos seios dela para aterrorizá-la. Ela é sentada numa cadeira diante do Julgador.
MELISSA – Tenham misericórdia, pelo amor de Deus!

CHANG LU – Deus não existe. Portanto, eu sou Deus!

MELISSA – (rezando) Senhor, tem piedade de mim!

Surge um terceiro sequaz anunciando:
BANDIDO 3 – (alto) Vai começar o Julgamento!

BANDIDO 1 – (para o outro) Vamos, vai começar o Julgamento.

BANDIDO 2 – Vai começar já.

CHANG LU – Ainda não. Antes, vamos preparar os ritos processuais...

BANDIDOS – (em coro) ...para que se faça a justiça.­­

Começa um ritual preparatório. Alguém com um arremedo de vestes talares apresenta um bode vivo ao Poderoso Chefão; depois o repousam numa bandeja e se dispõem em círculo ao redor dele. Em seguida, Godfather, com voz cavernosa, profere as palavras inaugurais do rito: - “Vamos pedir proteção para o bode”, no que é imitado por cada um dos seus sequazes. O animal é circundado também por objetos depositados em torno dele (a imagem de um rochedo, pássaros empalhados, madeira, ouro, serpentes, uma minicascata decorativa). Todos os presentes, exceto a vítima, começam um jogo de lançar armas contra o bode, sem o atingirem, simulando uma imunidade mágica do animal. O simulacro dura alguns minutos até que surge um ator fantasiado de demônio. O demônio mostra-se incomodado com a brincadeira. Ele então pega pela mão um ceguinho fantasiado de óculos escuros e o conduz em direção ao bode, enquanto os demais fingem apenas assistir à cena, atônitos, sem nada entender. “Por acidente” o galho de arbusto que o cego segurava nas mãos, como arma inofensiva, cai no chão, e o demônio o troca por um punhal (como numa comédia de erros). Finalmente, o cego mata o bode por engano. Aí os presentes simulam uma reação coletiva contra o demônio astuto que enganou o cego, mas o demônio foge. O bode assassinado é oferecido a Chang Lu, em tom reverencial. A bandeja com o animal é então retirada da sala, como num andor, para ser lida a sentença de Melissa.
CHANG LU – Como você acaba de ver, a senhora foi considerada culpada.

MELISSA – Como é possível? Eu não fui sequer acusada!

CHANG LU – E precisa? A senhora mesma já se acusou.

MELISSA – Eu não disse uma palavra.

CHANG LU – Vejamos... (consulta papéis, simulando a atitude de um juiz) A senhora está sendo acusada de trair o seu namorado.

MELISSA – Que absurdo! Tudo o que eu fiz de errado só favoreceu a você, seu Diabo!

CHANG LU – A ré confessa, portanto, que cometeu o crime de perfídia. (fingindo que lê) A senhora iludiu um jovem magistrado de promissora carreira, tornando-se falsa namorada do rapaz para apropriar-se de documentos judiciais sigilosos, a saber, um relatório de inteligência da Polícia Federal com fotografias de novos traficantes que estão chegando à região da Tríplice Fronteira para concorrer com os meus negócios.

MELISSA – Eu repito: enganei o Eduardo e me arrependo. Mas, Excelência, não posso ser condenada por isto nesta Corte, porque meu ato só favoreceu a você mesmo.

CHANG LU – Vejamos... esta é apenas a metade da sua condenação. A outra metade é que, além de pôr a mão nas informações sigilosas prejudicando o seu namorado, a senhora se recusou a entregá-las ao Dr Bruno Zambetta quando solicitada, cometendo assim um crime de traição à organização do tráfico que já havia pago os seus honorários para executar o serviço por meio daquele escritório de advocacia.

MELISSA – É um absurdo! Eu não posso ser culpada pelas duas acusações ao mesmo tempo. E mais: eu não reconheço a legitimidade deste juízo. Isso aqui é um tribunal de exceção, que não tem nenhum valor legal.

CHANG LU – Doutora Melissa Fausto, não seja ingênua. Argumentos jurídicos não lhe servem de nada aqui. Se a senhora está num pesadelo, não pode apelar a instâncias do próprio sonho para contestá-lo. O pesadelo tem regras próprias e você está amarrada a ele até o fim, a menos que um fato externo lhe desperte. A senhora nunca leu Hans Kelsen?

MELISSA – Li na faculdade.

CHANG LU – Pois então. O Direito é um sistema autopoético, que se alimenta de si mesmo.

MELISSA – Desculpe corrigi-lo, Excelência, mas essa frase é do Niklas Luhman.

CHANG LU – Não faz mal. Os dois são compadres meus.

MELISSA – Faz-me rir, ô Godfather. Vai dizer que você é padrinho dos filhos deles também...

CHANG LU – Não tive esse privilégio. Mas é que, igualmente no meu sistema, Deus não pode te salvar.

BANDIDO 1 – Que barulho é esse, chefe?

BANDIDO 2 – (entrando na cena) Tem uma mulher lá fora querendo falar com o senhor, patrão.

CHANG LU – Quem é? Manda entrar.

Entra uma louca varrida conduzida pelo terceiro bandido.
LOUCA – (escandalosa) Ô China, ajuda eu! Ô China! Ajuda essa pobre mãe!

CHANG LU – Você outra vez! Eu não aguento mais esta louca na minha casa. Nós já acertamos a nossa parte no trato. O que você quer?

LOUCA – Me traz as minhas fias de volta. Eu tô arrependida. Eu quero comprar elas de volta.

CHANG LU – Tirem essa louca da minha frente.

Os bandidos arrastam a mulher, que grita histericamente.
CHANG LU – (irritado) Solta, solta. O que mais você quer? Fale logo!

LOUCA – (recuperando a lucidez) Eu quero devolver a casa que você me deu. Quero desfazer o nosso contrato. Traz as minhas filhas de volta lá da China...

CHANG LU – Trato é trato. E desfazer sai caro.

MELISSA – Seu canalha, você vendeu as meninas?

CHANG LU – Cale a boca! Ninguém pediu a sua opinião. Quem vendeu foi a mãe; eu só exportei pra Taiwan. (à mulher) Pra provar que tenho um coração mole e a senhora parar de me incomodar, podemos desfazer o nosso Pacto. A senhora devolve o imóvel, mas tem que escolher uma das duas filhas; não pode ter as duas de volta.

LOUCA – (enlouquecendo outra vez) Ai, como é que eu vou escolher uma filha e matar a outra?

CHANG LU – É pegar ou largar. E tem que pagar as despesas com a passagem de volta, que custa uma fortuna. Só posso perdoar essa dívida, se você casar comigo.

MELISSA – Você quer se casar com essa louca?

CHANG LU – (confidenciando) É só de fachada... eu preciso do visto pra ficar no Brasil. (aos seus homens) Agora, pela última vez, tirem essa mulher da minha frente.

Saem arrastando a mulher que grita desesperadamente. Quando os três bandidos retiram-se da cena para levá-la, ouve-se um barulho de confusão. É o Dr Wallenstein com a Polícia Federal.
EDUARDO – Esteja preso!

BANDIDO 1 – (sendo algemado) Chefe, não deu tempo avisar!

No tumulto, enquanto os três sequazes são algemados Chang Lu consegue fugir. Ele desaparece magicamente com uso de fumaça cênica.
Cortina.

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